A EDUCAÇÃO INCLUSIVA PARA DEFICIENTES AUDITIVOS/SURDOS-por Relma Urel Carbone Carneiro. In: APRENDIZAGEM, COMPORTAMENTO E EMOÇÕES NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR. Organização: Elisabete Castelon Konkiewitz. Editora UFGD, Dourados, 2013.

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Champ by Nancy Rourke Biography: I started drawing and painting at age six without my parents knowing I was born Deaf. I grew up in San Diego, and went to a strict oral program in a hearing school. All of my childhood life, I was always creating new pieces, and exhibited my artwork—everything from painting rocks to canvases—at art fairs, in contests, and at galleries from childhood to high school. I went on to study graphic design and painting at the National Technical Institute of the Deaf and Rochester Institute of Technology in New York and earned a master’s degree in computer graphic design and painting. In 1979, I had my very first showing at the National Gallery of Art in Washington, D.C. I then was among 12 Deaf artists participating at the Heart, Eye, Hand exhibit held at the Los Angeles-based Ankrum Gallery. This gallery was owned by Joan Ankrum, Morris Broderson’s aunt. Morris Broderson was a famous Deaf artist. It was at this point in my life that I stopped painting. I did not have full confidence in my chances at success in the art community, so I chose to become a 9-to-5 employee. http://www.nancyrourke.com/biography.htm

 

 

Carla é uma garota do 1º ano, e em função de uma deficiência auditiva moderada usa um aparelho de amplificação sonora individual. Ao chegar a uma escola de ensino fundamental para fazer sua matrícula, sua mãe se deparou com algumas dificuldades. A diretora se mostrou apreensiva quando a mãe relatou a deficiência da filha e ponderou sobre o despreparo da escola. Ao expor o caso à professora do 1º ano, a diretora se deparou com muitos questionamentos: “Como eu vou cuidar dessa menina com mais 28 crianças? Eu não sei nada sobre esse aparelho. E se o aparelho quebrar na minha mão? E se outra criança jogar água ou areia no aparelho? Como eu vou falar com ela se ela não me ouve direito? Diretora me desculpe, mas eu acho que não dá”. A mãe disse que a criança tinha um bom resíduo auditivo, tinha frequentado toda a educação infantil e apresentado resultados satisfatórios, além disso, ela tinha o direito à vaga garantido por lei.   

Bruno é surdo profundo de nascença e se comunica desde pequeno através da Língua Brasileira de Sinais. Sua professora da classe especial o encaminhou para o ensino regular por entender que ele teria possibilidades de acompanhamento. Ao chegar à escola para fazer sua matrícula no 6º ano, seus pais explicaram à diretora a necessidade que ele teria de ter um acompanhamento com um intérprete de Libras, pois essa era sua forma de comunicação. A diretora disse que esse profissional não estava disponível na escola e que lá ninguém tinha conhecimento nessa área. Os pais insistiram em fazer sua matrícula, pois esse era um direito garantido por lei. 

Os dois casos relatados acima, apesar de serem fictícios, representam de forma bastante clara uma realidade muito comum na educação brasileira, tanto em relação ao despreparo da escola para lidar com a diversidade do alunado (quer sejam deficientes auditivos/surdos ou com qualquer outro tipo de necessidade especial), quanto em relação à diferenciação entre características de alunos com deficiência auditiva/surdez.

Neste capítulo discutirei a abrangência da questão da deficiência auditiva/surdez, as possíveis alternativas de escolarização, e a necessidade urgente de ressignificação da escola para o atendimento de tal clientela.

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Precious by Nancy Rourke- Artist’s Statement : My work has a centralized focus that makes a theme; resistance, affirmation and liberation art. I create words, images, colours and all of the construction that show blue tapes, yellow lights, hands, eyes, elephant, horse, strings, cracks, bandaids and so on. Primary colours are what I use. I also use monochrome for reinforcement. These elements make a big exposure to both Deaf and Hearing society. This is what Deaf View Image Art is all about, my interpretation. I make a political statement. I capture today’s society that needed attention because it is long overdue. Part of it, is to educate and part of it is a wake-up call. These influences came from painters Jean Michel Basquiat and Jacob Lawrence, who studied the civil rights movement. In resistance art, the work shows mask of benevolence, linguistic controversy, oralism, mainstreaming, genetic engineering, communication barrier, colonialism, paternalism, and audism. In affirmation art, the work shows empowerment, ASL, Deaf culture, identity, acceptance, Deaf history, and Deafhood. In liberation art, I combine both resistance and affirmation that shows empowerment and identity. I paint how Deaf people have been controlled by predominantly audist environments. I seek to portray on how much suffering and submissive Deaf people were, many years when Aristotle (384-322 BC) said “Deaf born senseless and incapable to reason.” I felt this was important for the audience to see who and what our human rights are. Discrimination was too much and this is what I am painting today. http://www.nancyrourke.com/biography.htm

 

Conceituando deficiência auditiva e surdez

Os dois casos apresentados mostram crianças com características auditivas bastante distintas, o que nos remete a necessidade de uma conceituação dos termos que envolvem a área.

Os conceitos de deficiência auditiva e de surdez algumas vezes são entendidos como similares e outras vezes como antagônicos. A privação auditiva varia em pelo menos quatro graus diferentes, dependendo da classificação adotada. Começando por uma perda leve de audição em torno de 15 a 30 decibéis, o que significa que o indivíduo com essa perda não ouve sons dessa intensidade, porém pode ouvir quase tudo, inclusive todos os sons de fala que variam entre 50 e 70 decibéis; passa por uma perda moderada (entre 31 e 60 decibéis), uma perda severa (entre 61 e 90 decibéis) e chega ao que chamamos de perda profunda, aquela em que o indivíduo só ouve sons acima de 90 decibéis, o que o impede de ouvir os sons de fala que, como descrito acima, figuram em uma faixa de 50 a 70 decibéis.

Diante de tamanha variação, a colocação de indivíduos com perdas de audição variadas em um mesmo patamar parece-me bastante simplista.

Ao tratar desta problemática de forma global, tenho usado o termo deficiência auditiva/surdez com o intuito de considerar as especificidades de cada caso. O posicionamento diante da conceituação se faz necessário no sentido do entendimento da abordagem educacional a ser seguida.

Um indivíduo com perda de audição leve ou moderada pode se beneficiar com o uso de um dispositivo de amplificação sonora, acompanhamento fonoaudiológico durante o período de desenvolvimento e estruturação da linguagem oral e um trabalho de apoio educacional especializado, se necessário, durante sua escolarização, podendo assim apresentar um desenvolvimento linguístico oral e global pleno. 

Diferentemente, um indivíduo com uma perda severa ou profunda de audição que o impede de desenvolver de forma plena a linguagem oral, mesmo com o uso de recursos tecnológicos e os apoios necessários, necessita de uma outra abordagem educacional, que o perceba não como um indivíduo que apresenta uma pequena diminuição auditiva, mas como um indivíduo diferente, surdo, que terá seu desenvolvimento linguístico e global pautado em um outro modelo.

A seguir, abordarei a deficiência auditiva e a surdez separadamente explicitando ainda mais suas diferenças e, consequentemente, as variáveis implicações educacionais.

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Love-by Nancy Rourke Biography of Nancy Rourke: It was until 2010, I became involved in the De’VIA art movement, and realized I had discovered my passion. I waited so long to start painting Deaf Art. I put off wanting to express my past experiences by audism and oppression from the realm of Oralism. I was not ready to come out of the nutshell and then I did not think I would do well in the Deaf Art, in other word, De’VIA, which is a movement for Deaf Art. De’VIA stands for Deaf View / Image Art. The art movement was established in 1989 by nine Deaf artists. I was hesitated to show the world my Deaf Art. In the past, the Deaf community kept their anger and frustration quiet and low profile. I received an award from Puffin Foundation to study, through painting, on Deafhood, Deaf culture, audism, Deaf history, Deaf politics, American Sign Language and bilingualism. http://www.nancyrourke.com/biography.htm

 

Deficiência auditiva

Segundo Carneiro1, a função auditiva é um importante elemento de interação entre a criança e o meio. Considerando os estudos desenvolvidos por Piaget2, desde os primeiros dias de vida o bebê já apresenta um grande interesse pelos sons. A partir da segunda semana de vida, já é possível observar uma parada no choro, por alguns instantes, a fim de escutar um som emitido junto a sua orelha. Durante o segundo mês, já se pode falar de adaptação adquirida, pois o som ouvido provoca uma parada, mesmo que pouco duradoura, da ação em curso e uma busca propriamente dita. Ao estudarmos simultaneamente a fonação e a audição, percebe-se que o ouvido e a voz estão ligados para a criança, pois não só a criança ouvinte regula, antes de tudo, a sua própria fonação pelos efeitos acústicos de que se apercebe, mas também a voz de outra pessoa age diretamente sobre a emissão da sua.

A partir do terceiro mês, podemos considerar uma coordenação entre a visão e a audição, que é logo de início uma relação de compreensão (reconhecimento de significações).

Com relação à coordenação entre a audição e a fonação é ainda mais simples, pois toda fonação se faz logo acompanhar de uma percepção auditiva e por ela se rege. Por outro lado, acontece também o processo inverso sendo, por exemplo, o gemido de outrem que alimenta o da criança. Dessa forma, os esquemas da fonação e da audição se assimilam reciprocamente.

Pudemos observar nos parágrafos anteriores uma breve explicação baseada na teoria de Jean Piaget, mostrando o quanto a audição é importante desde o início para o desenvolvimento dos esquemas que coordenados a outros vão construindo as estruturas cognitivas da criança e possibilitando a relação com o outro.

As crianças com deficiência auditiva podem se beneficiar do uso de aparelhos de amplificação sonora, pois possuem um resíduo auditivo tal que amplificado lhes dão informações auditivas bastante próximas daquelas de pessoas ouvintes. Dessa forma, sua escolarização deverá transcorrer naturalmente, porém com a atenção necessária para sua especificidade.

Ao matricular um filho deficiente auditivo na escola, os pais devem informar a mesma sobre a deficiência de seu filho, passar todas as informações necessárias em relação ao uso de aparelho de amplificação sonora individual (caso o aluno faça uso), em relação a terapias individuais que o aluno frequente (por exemplo, de fonoaudiologia), além de se colocarem a disposição para todo o acompanhamento escolar do filho.

Muitas vezes, porém, o processo pode ser inverso, sendo a deficiência auditiva percebida somente na escola em virtude de dificuldades encontradas pelo aluno. Nesse caso a escola deve notificar a família e sugerir uma avaliação audiológica para um diagnóstico preciso e as possíveis intervenções a serem feitas.

Uma vez constatada a deficiência auditiva, a escola deverá organizar o ambiente de forma que a inclusão desse aluno seja garantida. O conceito de inclusão aqui apresentado está em consonância com a definição apresentada nas Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica3, que diz:

o conceito de escola inclusiva implica uma nova postura da escola comum, que propõe no projeto pedagógico – no currículo, na metodologia de ensino, na avaliação e na atitude dos educadores – ações que favoreçam a interação social e sua opção por práticas heterogêneas. A escola capacita seus professores, prepara-se, organiza-se e adapta-se para oferecer educação de qualidade para todos, inclusive para os educandos que apresentem necessidades especiais. Inclusão, portanto, não significa simplesmente matricular todos os educandos com necessidades educacionais especiais na classe comum, ignorando suas necessidades específicas, mas significa dar ao professor e à escola o suporte necessário a sua ação pedagógica. (p.40)

Essa escola inclusiva está em processo de formação. Historicamente, nossa sociedade excluiu os alunos com deficiência do convívio da sala de aula comum, entendendo que sua aprendizagem se daria de forma mais adequada em ambientes restritos e adaptados. Temos a comprovação também histórica, que tal prática não resultou em modelos ideais de ensino e aprendizagem para tal clientela. Diante dessa constatação e de uma transformação gradual, a sociedade tem caminhado para busca de uma política de aceitação e reconhecimento das diferenças, de forma que no âmbito educacional esta política se traduz em uma escola de qualidade para todos.

A escola inclusiva para o aluno deficiente auditivo se faz com a formação continuada de sua equipe escolar, da gestão aos serviços de apoio, garantindo assim conhecimento sobre a área e as especificidades de sua clientela. O professor tem um papel importante, como todos os outros elementos da equipe, necessitando de um acompanhamento especializado para fazer as adaptações necessárias em sua rotina de trabalho de forma a atender as necessidades educacionais especiais de seus alunos deficientes auditivos, que a priori, pouco se diferenciam das necessidades dos demais alunos.    

O aluno com deficiência auditiva usuário de aparelho de amplificação sonora deve ter algumas necessidades especiais atendidas como: sentar-se próximo ao professor; ter um ambiente de sala de aula silencioso; ter colegas de classe informados sobre suas necessidades; ter abertura para expor dúvidas (quaisquer que sejam elas); ter direitos e deveres como todos os outros alunos; participar de todas as atividades etc.

Retomando o primeiro caso apresentado no início do capítulo descobrimos que toda a dificuldade apresentada à mãe de Carla pela escola, está fundamentada na falta de conhecimento e de prática com esses alunos. Os cuidados com o aparelho são reais, porém, tranquilamente possíveis. Quando as crianças são orientadas sobre o aparelho, sua função e os cuidados necessários, elas próprias atuam como colaboradoras. O professor bem orientado terá sua rotina natural, fazendo as alterações quando necessárias de forma também natural.         

Mais do que adaptações físicas ou curriculares, a necessidade prioritária é de mudança conceitual sobre o papel da escola, o processo de ensino e aprendizagem, diversidade e equidade.   

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Feeling neglect-by Nancy Rourke

 

Surdez

A surdez se caracteriza como a incapacidade de percepção dos sons de forma a impedir o desenvolvimento da linguagem oral, principal canal de desenvolvimento da comunicação humana. Apesar de afetar outros campos do desenvolvimento, como a ausência de informações sonoras capazes de alertar quanto ao perigo, ou de situar um objeto no espaço, a surdez afeta de forma mais abrangente o aspecto psicossocial e educacional da criança.

Quando a surdez é congênita ou adquirida antes do desenvolvimento da linguagem oral suas implicações são muito sérias, pois a criança não terá oportunidade de desenvolver a fala de forma natural e o seu desenvolvimento de linguagem também será afetado na medida em que a privação sensorial irá distanciá-la de elementos fundamentais para a sua aquisição, como por exemplo, o reconhecimento de sons, a constituição de um esquematismo auditivo (nas palavras de Piaget), a internalização de conceitos e a interação social, elemento fundamental e indispensável no processo de aprendizagem da criança.

  O desenvolvimento da linguagem pela criança surda se dará ancorado em outro canal de informações, o visual e o tátil-sinestésico. Para tanto, a criança surda necessitará de outra forma de linguagem para relacionar-se com o outro, no caso acesso à língua de sinais, que possibilitará o desenvolvimento de um esquematismo linguístico e, consequentemente, somado a outros aspectos, o desenvolvimento cognitivo.

Embora não seja elemento suficiente, a linguagem ocupa um importante papel no desenvolvimento cognitivo.

A privação auditiva acarreta na criança surda, que na maioria das vezes é filha de pais ouvintes, um distanciamento das possibilidades de desenvolvimento natural da linguagem e consequente dificuldades no desenvolvimento cognitivo compatível com o esperado. Esse fator não é decorrente da surdez propriamente dita, mas da falta de oportunidades de desenvolvimento da língua e trocas simbólicas que a língua de sinais pode possibilitar.

Ao receber um diagnóstico de surdez, que muitas vezes chega tardiamente, por volta de um ano de idade, a família ouvinte tem muita dificuldade em aceitar o estabelecimento de uma língua diferente da sua, no caso a língua oral, e buscar competência para oferecer uma outra língua, no caso a de sinais, para seu filho surdo.

O desenvolvimento de uma língua se dá mediante a exposição à mesma. Fernandes4 afirma:

parto da premissa de que a linguagem se constitui na interação com os outros sujeitos e que, para tanto, não basta ensiná-la ao surdo, é necessário inseri-lo em um diálogo, para que, por meio do processo de interação/interlocução, se possa chegar à construção de significados. (p.38)

Em um ambiente de ouvintes que se comunicam predominantemente através da língua oral, a criança surda não tem modelos linguísticos a seguir nem tão pouco interlocutores. Sua comunicação, bastante restrita e precária, se estabelece por meio de alguns gestos e da indicação manual do que quer. Esse comportamento pode levar, progressivamente, a um isolamento social.

Ao longo de vários anos, ancorado na premissa de que o pensamento se desenvolvia a partir da linguagem oral e no desenvolvimento tecnológico que desenvolveu aparelhos de amplificação sonora cada vez mais potentes, muitos profissionais da saúde e da educação, ligados a área da surdez, entendiam que o desenvolvimento da criança surda só se daria se ela fosse exposta a um árduo trabalho de reabilitação auditiva e oral. Dessa forma, o uso da língua de sinais era proibido por ser considerado prejudicial ao desenvolvimento da criança. Nessa perspectiva, durante muito tempo o surdo foi privado do contato com a língua de sinais, que como qualquer língua precisa ser estabelecida o mais cedo possível, e foi exposto ao contato com a língua oral, que como segunda língua, na maioria das vezes não se estabelecia de forma satisfatória o suficiente para garantir desenvolvimento cognitivo e interação social.

Por volta da adolescência, em contato com outros surdos, longe do olhar disciplinador dos familiares e educadores, os surdos desenvolviam precariamente uma comunicação por sinais, muitas vezes sem possibilidades de uma melhor fluência.

Diante desse contexto de negação da língua de sinais, e de tentativa de igualar o surdo ao ouvinte a sociedade não desenvolveu mecanismos de acesso do surdo à língua de sinais.

A língua de sinais é um meio de comunicação que, diferente das línguas orais que se estabelecem por meio do canal auditivo-verbal, se estabelece pelo canal espaço-visual. Apesar de historicamente ter sido usada por comunidades surdas, seu reconhecimento enquanto língua é recente.

O método oral tem dominado a educação de surdos a mais de cem anos, desde o Congresso de Milão em 1880, impondo uma abordagem ouvinte ao surdo. Os professores de surdos que quase em sua totalidade são ouvintes, por todo esse tempo se negaram a reconhecer a língua do surdo e mais que isso, impuseram-lhes uma forma de comunicação que atendesse aos anseios dominantes. Segundo Kyle5, os professores ouvintes ao usarem somente a fala em sala de aula, não conhecem e não reconhecem a competência linguística de seus alunos surdos usuários da língua de sinais. Devido a essas circunstâncias, fica mais fácil, em teoria, exigir que os alunos surdos neguem sua própria língua e tentem removê-la do ambiente escolar.

Em 1960, William Stokoe publicou o artigo “Sign Language Structure: An Outline of the Visual Communication System of the American Deaf”, demonstrando que a língua americana de sinais é uma língua com todas as características das línguas orais6. Conforme Quadros e Karnopp7, algumas definições anteriormente abordadas restringem o estudo das línguas naturais ao estudo das línguas faladas, no entanto, a partir de 1960 e dos estudos de Stokoe, observou-se que o entendimento sobre línguas em geral e sobre línguas de modalidade visoespacial tem aumentado significativamente.   

Ainda conforme Goldfeld6, no Brasil, a partir da década de 1980, com pesquisas inicialmente de Lucinda Ferreira Brito, é que a língua de sinais começa a ser pesquisada e difundida.

A aquisição da língua de sinais desde a mais tenra idade possibilita à criança surda maior rapidez e naturalidade na exposição de seus sentimentos, desejos e necessidades. Possibilita a estruturação do pensamento e da cognição e ainda uma interação social, possibilitando consequentemente o desenvolvimento da linguagem.

Conforme Skliar8, é necessário que haja uma mudança de concepção sobre o sujeito surdo, sua língua, as políticas educacionais, a análise das relações de saberes e poderes entre adultos surdos e ouvintes, de forma a efetivar uma educação realmente a favor do surdo. Essa mudança de concepção requer um aprofundamento dos estudos sobre a educação do surdo de forma a romper com a educação até agora praticada, que tenta fazer do surdo um sujeito igual que fala uma língua diferente.

Conforme Carneiro9, na atualidade, constatamos que a educação de crianças com deficiência vive um momento polêmico, tanto no que se refere às melhores estratégias metodológicas como também sobre qual a melhor modalidade de ensino a ser utilizada com eles – se ensino regular ou ensino especial.

De forma global, discute-se a necessidade de se construir uma sociedade inclusiva, em que entre outros, o direito à educação seja garantido a todos, deficientes ou não.

A educação especial brasileira está tentando se modificar, a exemplo de outros países, partindo das instituições especializadas que em sua maioria tinham objetivos predominantemente terapêuticos ou assistencialistas (que ainda subsistem), e caminhando para uma forma de atendimento educacional que se afina com as propostas de uma escola única para todos, que seja aberta às diferenças e que as entenda como forma de enriquecimento coletivo.

Estamos vivendo um momento de transição na tentativa de deixar o paradigma da integração, fracassado principalmente por centrar no deficiente as dificuldades, e por pressupor a sua reinserção na estrutura normal da sociedade, após um período de normalização e começando a criar o paradigma da inclusão, que pressupõe a inclusão de todos, independentemente de seu talento, deficiência, origem socioeconômica ou origem cultural em ambientes comuns nos quais terão todas as suas necessidades satisfeitas10,11.

Sabemos que o reconhecimento da língua de sinais brasileira de forma oficial é muito recente em nossa história (Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002), o que não oferece modelos adequados de desenvolvimento. A escola não possui os mecanismos adequados de ensino da Libras, principalmente no que diz respeito a recursos humanos e compreensão da Libras enquanto fundamental no acesso do surdo a níveis avançados de escolarização, escolarização esta que também precisa ser repensada, pois o simples uso da língua de sinais na escola pode não garantir o sucesso do surdo, uma vez que a base curricular é montada e executada por ouvintes e para ouvintes.

A escola para o surdo terá que se ressignificar, criando possibilidades reais de ensino de Libras para as crianças surdas e ouvintes, atendendo a meta da Lei de Libras que reconhece o Brasil como um país bilíngue. O ensino da Libras nas escolas proporcionará a formação de gerações bilíngues progressivamente.

A escola inclusiva para os surdos requer o oferecimento de instrutor de Libras, que ensine a língua à grande maioria de surdos que não a possuem (por serem filhos de ouvintes, não adquirem a língua em casa nas relações cotidianas), como única forma efetiva de acesso ao currículo – sem uma língua de acesso a comunicação e aos conteúdos curriculares, o aluno surdo não pode participar do processo de ensino e aprendizagem; tradutor intérprete de língua de sinais x língua portuguesa, que acompanhe o aluno durante todo seu percurso escolar, dando a ele oportunidade de permanência com aprendizagem; formação em serviço para os professores das classes comuns (conhecimento da Libras, conhecimento da cultura surda, trabalho colaborativo, adaptações curriculares etc); formação em serviço para toda equipe escolar etc.

A escola inclusiva pressupõe a formação de novas gerações com posicionamentos diferentes dos atuais em relação ao respeito às diferenças. Como dito anteriormente, o modelo de escola inclusiva está em processo de construção, a mudança de mentalidade é a última coisa que se muda em um processo histórico. A escola para ser inclusiva para o surdo terá que efetivar o ensino e o uso da Libras, e isso já tem acontecido através de exemplos de crianças ouvintes da educação infantil que aprendem a língua de sinais de forma natural com um amiguinho surdo na classe. 

Dessa forma, a educação tem um papel fundamental de oferecer uma educação que respeite a diferença linguística do surdo e que dê a ele oportunidades de desenvolvimento educacional pleno e, além disso, que trabalhe para a divulgação e conhecimento da língua de sinais por toda sociedade.

Considerando as necessidades do Bruno, segundo caso apresentado no início deste capítulo, vemos que a dificuldade da escola em efetuar sua matrícula está relacionada com a falta de entendimento das necessidades de reestruturação da escola para atender a diversidade.

Estamos no século XXI e vivemos em um contexto em que mudanças são exigidas em todos os âmbitos na busca da melhoria da qualidade de vida das pessoas. Dentro desse contexto, o discurso da inclusão social tomou conta dos debates políticos e educacionais. Como desenvolver e manter esta sociedade globalizada e igualitária considerando tantas minorias diferenciadas e desigualdades sociais que a compõe?

Considerando especificamente os surdos, a possibilidade de inclusão social e educacional passa primeiramente e necessariamente pela aceitação da língua de sinais como sua língua materna e pela garantia de seu desenvolvimento a partir de sua língua. Isso implica em mudanças na educação que é oferecida aos surdos, em investimentos em recursos humanos e em uma política de reconhecimento da diferença linguística dentro de um conceito de equidade.

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cochlear implant-by Nancy Rourke

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A educação brasileira está anunciando reformas, e a exemplo de muitos outros países, tem buscado no princípio da educação inclusiva a proposta de uma escola para todos, que respeite e esteja aberta às diferenças, entendida como forma de enriquecimento tanto do coletivo da escola como fundamental para a construção de uma sociedade democrática.

A transformação necessária se apresenta como algo processual e que deve abranger diferentes segmentos ligados à escola. Não é algo simples, nem rápido, pois requer primeiramente mudança de concepção de sociedade, de pessoa, de escola, de direito etc. Lima12 comenta que esta dificuldade de transformação da escola que está aí, em uma escola inclusiva, pode ser comparada a uma conexão no meio de uma viagem. No entanto, não é como descer de um avião com destino certo e entrar em um segundo avião com outro destino definido, mas sim uma alteração de rota dentro do mesmo avião, com a mesma tripulação, mas sem que a torre de controle possa dar indicações claras e precisas para onde devemos seguir.

Discutir a construção de uma sociedade inclusiva, que aceita e respeita as diferenças, abrange uma enormidade de aspectos, nem sempre visíveis, nem sempre sentidos, nem sempre desejados, pois temos arraigada uma cultura que valoriza a competitividade, a dominação, o mais forte.

A construção da escola inclusiva se fará com a quebra de paradigmas estabelecidos, com o entendimento e valorização da diversidade e no caso da deficiência auditiva/surdez com o oferecimento dos suportes necessários a cada indivíduo em particular.

 

Relma

 

Relma Urel Carbone Carneiro- Doutora em Educação Especial pela UFSCar, 

Professor Assistente Doutor-Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP-Departamento de Psicologia da Educação-relmaurel@fclar.unesp.br

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS 

 

  1. CARNEIRO, R. U. C. A noção de tempo na criança deficiente auditiva do Centro Educacional do Deficiente Auditivo (CEDAU), um estudo fundamentado na epistemologia genética de Piaget. (Dissertação de mestrado), USP – Bauru, 2002.

 

  1. PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

 

  1. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Básica. Brasília: MEC/SEESP, 2001.

 

  1. SILVA, A. C. A representação social da surdez: entre o mundo acadêmico e o cotidiano escolar. In FERNANDES, E. (Org.). Surdez e bilinguismo. Porto Alegre: Mediação, 2005.

 

  1. KYLE, J. O ambiente bilíngue: alguns comentários sobre o desenvolvimento do bilinguismo para surdos. In SKLIAR, C. (Org.). Atualidade da educação bilíngue para surdos. Porto Algre: Mediação, 1999.

 

  1. GOLDFELD, M. A criança surda: linguagem e cognição numa perspectiva sociointeracionista. 2ª Ed. São Paulo: Plexus Editora, 2002.

 

  1. QUADROS, R. M. & KARNOPP, L. B. Língua de sinais brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

 

  1. SKLIAR, C. Os estudos surdos em educação: problematizando a normalidade. In SKLIAR, C. A surdez: um olhar sobre as diferenças. (Org.). Porto Alegre: Mediação, 2005.

 

  1. CARNEIRO, R. U. C. Formação em serviço sobre gestão de escolas inclusivas para diretores de escolas de educação infantil. 2006. Tese (Doutorado em Educação Especial) – Programa de Pós-Graduação em Educação Especial: UFSCar, São Carlos, 2006.

 

  1. ARANHA, M. S. F. Inclusão Social e Municipalização. In Novas Diretrizes da Educação especial. São Paulo: Secretaria Estadual de Educação, 2001.

 

  1. STAINBACK, S.; STAINBACK, W. Inclusão: Um guia para educadores. Porto Alegre: Artmed, 1999.

 

  1. LIMA, L. Apertem os cintos, a direção (as) sumiu! Os desafios da gestão nas escolas inclusivas. In RODRIGUES, D.; KREBS, R.; FREITAS, S. N. (Orgs.). Educação Inclusiva e Necessidades Educacionais Especiais. Santa Maria: Ed. UFSM, 2005.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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