Doença do corpo e da mente: o que sabemos sobre o HAND? – por Brenda Arnold e Murilo Kratz
Brenda Arnold e Murilo Kratz
Resenha do artigo – HIV-associated neurocognitive disorder — pathogenesis and prospects for treatment. Autores: Deanna Saylor, Alex M. Dickens, Ned Sacktor, Norman Haughey, Barbara Slusher, Mikhail Pletnikov, Joseph L. Mankowski, Amanda Brown, David J. Volsky and Justin C. McArthur. Publicado na Nature Reviews|Neurology. v. 12, p. 234-248, Apr 2016.
A divisão entre mente e corpo é uma questão não-resolvida pela ciência e filosofia. Aristóteles, na antiguidade, defendia que a mente, representada por ele como a alma, é uma propriedade do corpo, perecendo junto com este1. Já Descartes estabeleceu uma das primeiras racionalizações entre mente/alma e corpo teorizando o domínio da alma sobre o cérebro através da glândula pineal2. O papel do sistema nervoso na consciência, desde as observações científicas mais antigas, mostrou-se grande demais para ser ignorado sem se perder credibilidade.
Todavia, com o desenvolvimento da psiquiatria e da psicologia moderna e contemporânea, exames de imagem, eletroencefalogramas e demais recursos científicos, o problema mente-corpo tornou-se cada vez menos um campo tão obscuro quanto era há séculos. A partir do exposto, passa-se a perceber que patologias do corpo podem afetar a mente, principalmente se essas têm como alvo as células do sistema nervoso central. Nesse contexto introduzimos o HAND (Distúrbios Neurocognitivos Associados ao HIV): uma doença física que afeta a mente.
O artigo de Deanna Saylor et al. apresenta-nos de forma muito satisfatória uma revisão englobando diversas facetas dessa doença que atualmente se constitui em uma verdadeira “epidemia oculta” para os portadores de HIV3. Assim, os autores discutem desde a epidemiologia do Disturbio Neurocognitivo Associado ao HIV (HAND), sua patogenicidade, biomarcadores, até os novos enfoques no que diz respeito ao tratamento – sobretudo em uma era na qual a erradicação do HIV pode ser passível. Entender melhor essa disordem significa proporcionar uma melhor qualidade de vida ao individuo HIV+.
Inicialmente, somos situados nos avanços do tratamento do HIV: ponto necessário para compreender a importância atual do HAND. É ressaltado o desenvolvimento da Terapia Antirretroviral Combinada (CART) para pacientes HIV+ e sua recomendação em ser iniciada assim que o paciente estiver disposto a tratar a infeccção, independente dos níveis de TCD4+. A eficacia dessa terapeutica se mostrou na diminuição da mortalidade por AIDS e no aumento da expectativa de vida. A CART, todavia, não impede o desenvolvimento do HAND – assim, conforme a estimativa de vida aumenta com o tratamento também aumenta, consequentemente, a incidência de HAND.
O termo HAND, afinal, é utilizado para descrever um espectro de disfunções no SNC associadas ao HIV. As manifestações típicas de HAND incluem dificuldades de atenção e memória, realizar múltiplas tarefas, controlar impulsos e realizar julgamentos. Além disso, também é associada a disfunção na coordenação motora, incluindo bradicinesia (lentidão dos movimentos), perda de coordenação motora fina e grossa e desequilíbrio ao caminhar. Os autores ressaltam que, enquanto deficits em habilidades motoras e na velocidade psicomotora eram as manifestações mais comuns na era pré-CART, déficits de aprendizado, memória e em funções de execução são os sintomas mais comuns atualmente: o corpo e a mente entrelaçando-se como um pensamento aristotélico.
Clinicalmente, são três níveis de debilidade neurocognitiva abrangidas pelo HAND: transtorno neurocognitivo assintomático (ANI), transtorno neurocognitivo leve (MND) e demência associada ao HIV (HAD), conforme mostra a figura 1. O diagnóstico ocorre pela utilização de testes neuropsicológicos e funcionais, qualificando a interferencia da doença no dia-a-dia e quantos domínios neurocognitivos são prejudicados (figura 2). Antes do advento da CART, HAD era a forma mais comum, e era quase sempre fatal. Após a implementação ampla da terapia antirretroviral combinada, essa manifestação mais grave do HAND caiu substancialmente (figura 3).
Os autores apontam que 15 a 55% dos indivíduos HIV+ têm HAND, sendo cerca de 70% a forma assintomática. Esta é relevante uma vez que pacientes afetados podem evoluir para formas mais severas. Eles trazem ainda um estudo que demonstrou que de 197 indivíduos, 77% mantiveram-se neurocognitivamente estáveis, 13% sofreram pioras em HAND e 10% obtiveram melhoras.
Figura 3. Terapias mais eficientes tem reduzido a proporção de pessoas com sintomas severos de HAND, caracterizado por sua forma demencial (HAD), mesmo que a proporção de individuos HIV+ com sintomas neurológicos tenha se mantido praticamente inalterada. Atualmente, são mais frequentes as formas de transtorno neurocognitivo assintomático (ANI).
Quanto aos fatores de risco associados ao HAND destacam-se: diabetes, tabagismo, dislipidemia, obesidade, hepatite C, substâncias de abuso e escolaridade baixa. No contexto global, considerando a proporção dos estudos já realizados sobre HIV, os autores ressaltam que o HAND poderia ser a forma mais comum de distúrbio neurocognitivo na juventude no mundo inteiro. Todavia, também resgatam uma perspectiva otimista: em países subdesenvolvidos, um estudo demonstrou melhoras de performance cognitiva associada ao uso mais amplo de CART.
Uma outra questão levantada no artigo refere-se aos biomarcadores da HAND. Apesar de uma variedade de biomarcadores em potencial para HAND já ter sido descoberta, a maioria destes são específicos de HAD (demência associada ao HIV), mas não de ANI (transtorno neurocognitivo assintomático) ou MND ( transtorno neurocognitivo leve). A atual falta de marcadores clinicamente comprovados para ANI e MDN sugere que apenas um biomarcador individual pode ser insuficiente para identificar estágios precoces de HAND. A presença de um intervalo entre esse envolvimento neurológico precoce e a presença clinica de sintomas de HAND sugere a existência de uma ampla janela terapêutica, na qual intervenções poderiam preservar a função cognitiva.
Sequencialmente, os autores dedicam-se à discussão da patogenicidade desse disturbio neurocognitivo. Eles apontam que a neuropatologia do HAND mudou consideravelmente desde a introdução da CART: a presença de encefalite por HIV em autópsias de indivíduos HIV+ foi reduzida de 54% para 15%. Monócitos ativos circulantes tem um papel essencial, tanto introduzindo o HIV no SNC por transmigração pela barreira hematoencefálica, quanto pelo estabelecimento da infecção nos macrófagos, micróglia e astrócitos. Apesar dos astrócitos aparentemente não serem capazes de produzir vírions intactos, eles produzem e exportam proteínas não estruturais que promovem inflamação e dano neuronal.
O artigo ainda traz a importância do cérebro como um reservatório para persistência do HIV. Modelos com o vírus da imunodeficiência símia nos dá grandes evidências a favor, além de numerosos estudos de níveis de RNA do HIV no LCR que também sugeriram a presença de infecção latente no cérebro.
Além disso, várias evidencias apoiam na noção de que a perda de homeostase energética poderia ser um evento precoce as disfunções funcionais do SNC: pacientes HIV+ exibem alterações generalizadas na expressão de genes que regulam o metabolismo energético cerebral, que progride com o tempo. Um estudo recente revelou aumentos seletivos no nível de glutamato no LCR em pacientes HIV+ tratados com CART. Graus de glicose reduzida no giro frontal medial e anormalidades na ressonância magnética com análise de espectroscopia são formas de se avaliar tais disfunções.
A possibilidade de piora da função neurocognitiva com CART de alta penetração-efetivada no SNC (CPE) criou preocupações de que os antirretrovirais em si possam ser neurotóxicos, contribuindo para a persistência da HAND. Alguns estudos in vitro dão base para essas preocupações. Se essas observações são clinicamente relevantes para outros regimes de CART, não se tem certeza. Todavia, devido aos seus efeitos positivos, que salvam muitas vidas, a CART não deve ser interrompida ou combatida apenas com o argumento de neurotoxicidade.
Um dos maiores desafios da comunidade de pesquisa focada em HAND é a falta de interesse da indústria farmacêutica. Tal descaso acaba sendo, dentro dos limites, compensado pela dedicação do meio acadêmico. À guisa de citação seriam os pesquisadores acadêmicos que estão desenvolvendo a insulina intranasal. Diversos estudos comprovaram a eficácia desta no melhoramento de função cognitiva em indivíduos saudáveis e com doença de Alzheimer, por mecanismos ainda não bem compreendidos.
Muitos progressos, portanto, já foram feitos no entendimento de fatores clínicos, epidemiológicos e neuropatológicos de HAND, mas ainda permanecem dúvidas críticas. Os autores esperam por melhoras substanciais nos próximos anos em relação ao desenvolvimento de biomarcadores validados e terapias efetivas que possam ser adicionados ao tratamento com CART para prevenir ou amenizar os déficits provocados por HAND. Afinal, a qualidade de vida e a felicidade de um individuo, cabe-se dizer, reside na máxima latina do poeta romano Juvenal: “mente sã num corpo são”5.
Brenda Arnold e Murilo Kratz-alunos do curso de Medicina-FCS-UFGD.
REFERÊNCIAS:
1 Hicks RD. Aristotle De Anima. 1907. Cambrigde press. Disponível em: < https://archive.org/stream/aristotledeanima005947mbp#page/n7/mode/2up>.
2 Lokhorst, Gert-Jan. Descartes and the Pineal Gland. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Apr 25, 2005 (revision Sep 18, 2013). Disponível em: <http://plato.stanford.edu/archives/sum2016/entries/pineal-gland/>.
3 Avaliação neuropsiquiatrica. Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. 2014. Disponível em: < http://www.aids.gov.br/pcdt/4>.
4 Sachdev PS; Blacker D; Blazer DG; Ganguli M; Jeste DV; Paulsen JS; Petersen RC. Classifying neurocognitive disorders: the DSM-5 approach. Nature Reviews Neurology 10, 634–642 (2014). doi:10.1038/nrneurol.2014.181
5 Braund SM. Juvenal and Persius. Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts, London, England. 2004. Disponível em: < https://books.google.com.br/books?id=VO6WOAijRB0C&printsec=frontcover&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>.