Migrânea e cefaléia em salvas – como o cérebro gera a sua própria dor- por Joel Cavalheiro Martins Junior.

por Joel Cavalheiro Martins Junior
Como pode o sistema nervoso criar, a partir de estímulos inócuos, uma dor de intensidade, por vezes, insuportável?
Este texto apresenta brevemente dois exemplos de cefaléias primárias, que ilustram que a dor nem sempre é um sinal de alarme de verdadeira lesão tecidual.
Apesar de lacunas ainda obscuras, a fisiopatologia das cefaléias primárias começa a se revelar e nos apresenta alterações intrigantes de neurocircuitos capazes de desencadear processos inflamatórios e ativação de vias de aferência dolorosa.
Betrogen! Betrogen! Einmal dem Fehlläuten der Nachtglocke gefolgt – es ist niemals gutzumachen. (Traído! Traído! Uma vez seguido o falso alarme da campainha noturna, não há mais como corrigir, nunca mais.)
Franz Kafka (Der Landarzt)
Migrânea (Enxaqueca)
A migrânea a segunda dor de cabeça primária mais comum (depois da cefaléia do tipo tensional) e apresenta prevalência em torno de 12%. Afeta desproporcionalmente mais mulheres e geralmente ocorre durante os anos mais produtivos da vida.
Enquadra-se em duas categorias, enxaqueca com aura (15%) e sem aura (85%). Pacientes podem relatar sinais e sintomas prodrômicos que se iniciam 24 a 48 horas antes da crise de enxaqueca. Consistem em hiperatividade, euforia branda, letargia, depressão, ânsia por determinados alimentos, bocejos em excesso e não devem ser confundidos com aura que consiste em episódios transitórios de disfunção neurológica focal que surgem1 a 2 horas antes da crise.
Fisiopatologia da migrânea

. This colored lithography, taken from Dr. Hubert Airy’s paper “On a distinct form of transient hemiopsia” (1870), is reported in Edward Liveing’s On Megrim, Sick Headache and Some Allied Disorders (Churchill, London, 1873), the first comprehensive treatise devoted to migraine. This picture is the first printed representation of a visual aura, in this case on the left side (sinistral teichopsia), in its progressive development.
http://www.sciencedirect.com/science
As antigas teorias neurogênicas e vasculares hoje são consideradas em conjunto, pois não são mutuamente exclusivas.
As cefaléias eram divididas em vasculares e não vasculares entretanto nem todos pacientes com alterações cerebrovasculares apresentam dor, e nem sempre a vasodilatação é dolorosa.
As teorias de Wolff (1948) pareciam simplistas demais e começaram a ser questionadas. Olesen et al.(1982) usaram ¹³³Xe intracarotídeo e 254 detectores externos acoplados ao crânio para medir o fluxo sanguíneo cerebral regional. Perceberam que em pacientes com ataques de enxaqueca havia uma redução durante a aura que parecia se iniciar de maneira restrita no pólo occipital avançando progressivamente para outras regiões. Nem sempre, porém, a hipoperfusão se iniciava nos pólos occipitais. Pacientes com fenômenos de aura não relacionados a alterações visuais tiveram hipoperfusão primária no lobo frontal. Este fenômeno foi chamado de spreading hypoperfusion (SH) que não respeitava a anatomia dos territórios vasculares e favorecia a existência de um mecanismo neuronal subjacente.
A velocidade de propagação da SH era semelhante à propagação de um fenômeno conhecido como depressão alastrante de Leão (DA), e admite-se hoje que a SH represente uma alteração hemodinâmica da passagem da DA e esteja diretamente relacionada com a fisiopatologia da enxaqueca.
–Depressão alastrante:
O professor Aristides Leão (Leão, 1944) do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro observou um fenômeno de depressão da atividade elétrica, que, quando induzido experimentalmente, propagava-se pelo córtex em todas as direções. Lashly, que estudou sua própria aura visual percebeu que as alterações seriam produzidas por algo que se propagava numa velocidade de 3mm/min, mesma velocidade da DA, portanto os estudo destes dois pesquisadores forneceram evidências a respeito da fisiopatologia da migrânea.
Moskowitz et al. (1993) demonstraram que a passagem da DA provocava a expressão de um marcador, o c-fos, no núcleo do trigêmeo (marcador não específico de atividade neuronal). A passagem da DA, portanto, ativa o sistema trigeminovascular. A dilatação de vasos arteriais na pia-máter de gatos ocorre após indução de DA, efeito produzido também parcialmente pelo peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (CGRP), indicando possíveis processos fisiopatogênicos diferentes.
–Sistema trigeminovascular:

O controle vasomotor encefálico é regulado por fibras nervosas presentes na parede do vaso. As fibras simpáticas se originam do gânglio cervical superior, contendo noradrenalina e neuropeptídio Y (NPY), com atividade vasoconstritora. Já as parassimpáticas geram vasodilatação, originam-se no gânglio esfenopalatino e contém acetilcolina e outros elementos tais como o peptídeo intestinal vasoativo (VIP).
Fibras sensitivas trigeminais funcionam também como eferentes. Seus neurotransmissores e neuromoduladores incluem substancia P, o CGRP e outras taquicininas, como a neurocinina A (NKA).
A substância P é o um peptídeo que provoca vasodilatação modesta e mais curta, atuando como neuromodulador. Aumenta a permeabilidade vascular, mas não modifica a barreira hematoencefálica. Não excita terminais nociceptores diretamente, embora medeie a resposta neuronal nociceptiva desencadeada por outros neurotransmissores. Já o CGRP é um vasodilatador mais potente com atividade mais intensa e longa.
–Inflamação neurogênica

Moskowitz et al.(1993) desenvolveram modelos experimentais de estímulo trigeminal em ratos, que induzia liberação dos vasodilatadores substância P e CGRP, fenômeno denominado inflamação neurogênica.
Estes mediadores podem ser obtidos no sangue da veia jugular ipsilateral à dor de pacientes com crise de enxaqueca e indicam ativação do sistema trigeminovascular.
Outra substancia relacionada com a fisiopatologia da migrânea e da cefaléia em salvas é o óxido nítrico (NO), sintetizado a partir da enzima óxido nítrico sintetase (NOS). A ativação do NO causa crise de migrânea nos pacientes migranosos, cefaléia em salvas em pacientes com diagnóstico de cefaléia em salvas e cefaléia não específica nos demais (controles).
–Serotonina (5-HT)

A serotonina é uma substancia que possui diversos receptores diferentes numerados de 1-5, com diversos subtipos. Os receptores 5-HT1D e 5-HT1B parecem ter relação direta com crises enxaquecosas. Medicamentos como o Sumatriptano (antienxaquecosos) agem como agonistas destes receptores causando vasoconstrição (na ativação do 5HT1B) e neuromodulação quando ativa receptores 5HT1D (impedindo a inflamação neurogênica), indicando a possível ação protetora da serotonina no processo de gênese da migrânea.
-Genética

Existe uma doença cerebrovascular denominada CADASIL (cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and leucoencephalopathy) que está ligada ao cromossomo 19p12. Pacientes com esta doença são mais acometidos com crises de migrânea do que a população geral. Este mesmo cromossomo está envolvido na transmissão da enxaqueca hemiplégica familiar (FHM) e 4 mutações em subunidades de canais de cálcio voltagem-dependentes P/Q já foram identificadas no cromossomo 19p13.1 em famílias com FHM. Desta forma acredita-se que a forma clássica da migrânea também possa ter origem genética, sendo uma canalopatia (Hanna et al., 2006).
-Explicação integrada da fisiopatologia

http://www.nature.com/nrneurol/journal/v6/n10/fig_tab/nrneurol.2010.127_F1.html
Alterações genéticas dos canais de cálcio provocam estado de hiperexcitabilidade que torna o SNC mais susceptível a estímulos externos (luminosos, alimentares, entre outros) e internos (estresse). Isso leva ao aparecimento da DA. Náuseas e vômitos originam-se a partir da excitação do núcleo do trato solitário, que transmite sinais a núcleos da forma,ao reticular do tronco encefálico. A DA ativa o sistema trigeminovascular na periferia e no tronco cerebral. A ativação deste sistema desencadeia liberação de vasodilatadores como CGRP e SP (inflamação neurogênica com vasodilatação e aumento da permeabilidade vascular). Quando os estímulos nociceptivos trigeminais atingem o tálamo e posteriormente o córtex cerebral originam a sensação consciente de dor.
O que é considerado pelo leigo como causa de migrânea (chocolate, estresse, alimentos com tiramina entre outros) é, na realidade, um simples fator desencadeante da crise, que depende de uma predisposição individual.

Cefaléia em salvas (Cluster headache)
É uma cefaléia primária que se manifesta por episódios de dor muito intensa, unilateral, no território orbital (distribuição do primeiro ramo do nervo trigêmeo-nervo olfatório) e é acompanhada de sinais autonômicos ipsilaterais à dor com perfil temporal único e exclusivo. Surgem diariamente com ciclo circadiano, e em períodos circanuais.Os mecanismos de sua etiopatogenia devem explicar o tipo e localização da dor, acompanhantes autonômicos e o padrão temporal.
Os acompanhantes autonômicos caracterizam por ativação parassimpática (lacrimejamento, rinorréia), disfunção simpática (miose e ptose) e novamente mediado pelo parassimpático (congestão nasal, edema de pálpebra e sudorese
frontal).
Estas manifestações estão relacionadas com ativação do sistema trigeminovascular e trigemino-autonômico, sendo este uma conexão entre o núcleo do trigêmeo e vias parassimpáticas do nervo facial a nivel do tronco cerebral. Estímulos dolorosos que atingem o nucleo do trigêmeo ativam o nucleo salivatório superior do nervo facial, responsável por ativação parassimpática.
Toda esta ativação leva a liberação do VIP e NO, causando rinorréia lacrimejamento, congestão nasal e um aumento do fluxo sanguíneo ao nível da parede da artéria carótida, podendo tornar o plexo simpático pericarotídeo disfuncional com ptose e miose. A estimulação do trigêmeo, através do reflexo trigemino-autonômico, leva a uma vasodilatação cerebral mediada também pelo CGRP.

Estes fenômenos não explicam, porém, o ritmo circanual e circadiano da cefaléia em salvas. Há evidências de que o hipotálamo, mais especificamente o nucleo supraquiasmático, esteja envolvido com esta periodicidade. Já se observou diminuição de níveis séricos de testosterona e alterações nos ciclos circadianos dos hormônios LH, FSH, cortisol, prolactina, GH, TSH nos doentes com cefaléiaem salvas. Maye colaboradores (1998) já demonstraram por tomografia de emissão de pósitrons (PET) que essa região do hipotálamo tem mais atividade nos períodos de salva. Estimulação hipotalâmica tem se mostrado eficaz na prevenção de ataques de salvas em pacientes com quadro crônico refratário à medicação (Leone, 2010).

Possível explicação etiopatológica
O “teatro de operações” da cefaléia em salvas, relacionado com as alterações vasculares envolvidas em sua manifestação clínica, seria o local de convergência de fibras simpáticas, parassimpáticas, artéria carótida interna e primeira divisão trigeminal, ou seja o nervo oftálmico, que atravessa o seio cavernoso.
A etiopatogenia ainda obscura desta doença estaria diretamente relacionada com alguma disfunção hipotalâmica, especificamente no núcleo supraquiasmático, que levaria a alterações cronobiológicas do paciente sálvico. Estes fenômenos levariam à disfunção simpática e ativação do sistema trigêmino-vascular.
Tudo isso levaria ao desenvolvimento de uma inflamação neurogênica do seio cavernoso, mediada principalmente pelo CGRP. O estímulo também passaria para o tálamo levando à sensação de dor a nível cortical, ou seja, à consciência da dor. A ativação reflexa do nucleo salivatório superior tem como aferente as vias trigeminais e como eferente as vias parassimpáticas (gânglio esfenopalatino), que, nesta situação estariam hiperativadas.
Joel Cavalheiro Martins Junior -acadêmico do curso de Medicina da Faculdade de Ciências da Saúde/UFGD-8a turma
Referências:
- Almeida, RF. Cefaléiaem salvas. Quadro clínico e fisiopatologia – uma breve revisão. Migrâneas cefaléias, v.7, n.4, p.133-139, out/Nov/dez, 2004.
- Almeida, RD. Hemicrania pasoxística: um novo caso (?), Migrâneas cefaléias, v9, n.1, p.23-26, jan/fev/mar. 2006.
- Goldman, L; Bennet, JC; et al. Cefaléias e outras dores de cabeça: Cecil tratado de medicina interna , Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan. 2001, 21. Ed, cap. 454, p. 2306-2312.
- Hanna, M. G. Genetic neurological channelopathies. Nature Clinical Practice Neurology. Maio 2006. Vol. 2. n° 5.
- Leão AAP. Spreading depression of activity in cerebral cortex. J Neurophysiol 1944;7:359-390
- Leone M, Franzini A, Cecchini AP, Broggi G, Bussone G.Hypothalamic deep brain stimulation in the treatment of chronic cluster headache. Ther Adv Neurol Disord. 2010 May;3(3):187-95.
- May, A., Bahra, A., Buchel, C., Frackowiak, R.S. and Goadsby, P.J. (1998) Hypothalamic activation in cluster headache attacks. Lancet 352: 275_278.Moskowitz MA, Nozaki K, Kraig RP. Neocortical spreading depression provokes the expression of c-fos protein-like immunoreactivity within trigeminal nucleus caudalis via trigeminovascular mechanisms. J Neurosci 1993;13:1167-1177.
- Olesen J, Lauritzen M, Tfelt-Hansen P, Henriksen L, Larsen B.Spreading cerebral oligemia in classical- and normal cerebral blood flow in common migraine. Headache. 1982 Nov;22(6):242-8.
- Wolff HG. Headache and other head pain. New York: Oxford University Press; 1948.
- Parreira, E; Gouveia, RG; Martins, IP. Cefaléia em salvas: fisiopatogenia, clínica e tratamento, Revista Port Clin Geral, 2006; 22:471-482.
- Vincent, M. Fisiopatologia da enxaqueca (ou migrânea). Medicina, Ribeirão preto, 30: 428-436, out/dez, 1997.
Tenho cefaleia em salvas
Tomo oxigênio
Tomo sumax
Tomo verapamil
Tomo predinisona
Não é facil conviver com este problema, principalmente trabalhar, esta dor acaba com a pessoa e acaba com o dia também.
Hoje procuro meios para tentar acabar com isso.
Vou tentar mudar a minha alimentação totalmente e ver se surte efeito.
como cito esse texto?
Texto muito bom e explicativo. Eu sofro de aura com sintomas visuais e muita dor, desde novinha.