Deprivação física e emocional na infância: experiência com crianças de orfanatos da Romênia- por Vitor Colpo e Bruno Ernandes

Resenha do artigo “Child-to-adult neurodevelopmental and mental health trajectories after early life deprivation: the young adult follow-u of the longitudinal English and Romaniena Adoptees study

 

OS “ÓRFÃOS” DA ROMÉNIA, 15 ANOS DEPOIS”: O que eu vi está para além do que é acreditável. Era horrendo”, conta uma britânica que chegou à Roménia em 1990, meses depois da queda de Ceausescu, para trabalhar com crianças a cargo do Estado. “Havia 30 em cada quarto e algumas vezes uma cama para cada cinco”, relata uma
ex-residente. A BBC on line foi ver onde estão as crianças romenas que cresceram sem família
Foi há 15 anos que o mundo descobriu, chocado, as dezenas de milhar de crianças que viviam nos orfanatos, lares e afins da Roménia. Cresciam isoladas do resto da sociedade, eram frequentemente vítimas de castigos físicos e de abusos sexuais, algumas sofriam de malnutrição.
O relato é de Kate McGeown, para a BBC on line. Trabalhou como voluntária no hospital psiquiátrico para crianças, na cidade de Siret. Da primeira visita que fez ao local, em 1996, recorda as crianças semi-despidas que “pulavam em todas as direcções” e “o cheiro intenso a urina e a suor”. Nove anos depois, é a autora de uma série de artigos que o site publicou nos últimos dias (http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/europe/4629589.stm).
Objectivo: traçar o percurso de algumas das crianças que viviam nas “instituições de Ceausescu”, contar como eram tratadas e como se adaptaram quando saíram, onde estão hoje – sendo certo, como fez saber Silvia Boeriu, da organização Save the Children, que muitas simplesmente desapareceram. Aos 18 anos, a maioria dos miúdos era mandada embora, sem a mínima noção do que era o “mundo exterior”.
“O que eu vi está para além do que é acreditável. Era horrendo”, contou Monica McDaid, uma professora britânica que chegou à instituição de Siret em 1990, meses depois da queda de Ceausescu. “Havia crianças que não viam a luz natural há anos.”
Mihai, 28 anos, viveu nesse hospital. “A minha vida era comer e dormir – apenas existir”, relatou a McGeown. “Éramos agredidos pelos funcionários e quando era mais jovem era abusado pelos rapazes mais velhos.”
A instituição fechou, as autoridades ainda localizaram a família, mas Mihai não se adaptou e acabou por regressar a Siret, onde vivem muitos dos ex-colegas. Tem, contudo, uma existência muito diferente. Trabalha, comprou um apartamento – “Sou livre”, conta à BBC on line.
“Davam-nos injeções
para nos acalmar”
Segundo relata Kate McGeown, estas instituições para crianças eram o resultado do desejo de Ceausescu de aumentar a população do país. Proibidos que eram os contraceptivos, e encorajados os casais a terem tantos filhos quantos pudessem, muitos acabavam por ter bastantes mais do que os que podiam sustentar.
Acabavam por entregar as suas crianças aos cuidados do Estado ou simplesmente abandonavam-as. E assim nasceram enormes orfanatos.
As instituições destinadas aos que tinham alguma deficiência eram as que tinham pior reputação. Numa em Cighid, na região de Bihor, a mortalidade chegou a ser de 50 por cento num ano. Muitas das crianças nestas unidades, não eram, na verdade, deficientes. Tinham um irmão que era, ou dava-se apenas o acaso de haver lugar para elas.
“Davam-nos injecções para nos acalmar. Não sei o que era, mas fazia-nos dormir muito”, diz Vasile, hoje com 21 anos.
Houve quem não recuperasse do trauma e tenha mergulhado no mundo do álcool, das drogas ou dos sem-abrigo. Nicolae, 28 anos: “Quando saí do orfanato [aos 18], não tinha mais nada para além da roupa que tinha vestida. Vivo na rua desde essa altura.”
Mas como Mihai são também muitos os que refizeram a sua vida e garantem ser felizes. “Fugi de uma instituição em Siret há mais de dez anos e pouco depois casei. O meu marido também esteve lá. Hoje temos emprego e um apartamento – e também os nossos filhos. Sou muito feliz. Este era o sonho das nossas vidas – ter uma família nossa”, conta Mihaela, 30 anos.
“Apanhei hepatite,
ninguém reparou”
Foram precisos vários anos, após a queda de Ceausescu, para algo mudar verdadeiramente no sistema de protecção às crianças, escreve McGeown.
Prova desse atraso é o depoimento de Viorica, hoje com 19 anos, grande parte dos quais passados numa instituição: “Havia 30 em cada quarto e algumas vezes uma cama para cada cinco de nós. Não podíamos sair e na maior parte das vezes não nos era permitido sequer brincar. Não tínhamos nada para fazer. Os funcionários costumavam bater-nos muito. Acho que gostavam.” E continua: “Quando tinha 10, 11 anos apanhei hepatite e ninguém reparou ao longo de uma semana.”
Viorica saiu em 1999, dois anos antes de a instituição fechar. Hoje, com a ajuda de uma organização (a O Noua Viata, que significa “uma nova vida”), arranjou trabalho e tem um tecto. Aos domingos reza para que um dia os pais apareçam. “Não me consigo lembrar deles.”
“A vida era uma contínua luta pela sobrevivência”, lembra Ioan, que passou vários anos noutra instituição, em Tirgu Ocna.
Um estudo recente da Unicef mostra que as taxas de abandono de recém-nascidos no país continuam altas. Silvia Boeriu, da Save the Children Romania, garante a McGeown que muitos funcionários dos berçários “continuam a encorajar as mulheres a desistir dos seus filhos”. Cerca de nove mil crianças são abandonadas por ano.Texto extraído de : https://www.publico.pt/sociedade/jornal/os-orfaos-da-romenia-15-anos-depois-30746. Acessado em 05/08/2017

A deprivação física e emocional na infância é um fator de risco para o surgimento de doenças mentais na vida adulta , porém seu suporte vem sendo a observação  na pratica clínica e  os experimentos com animais uma vez que por restrições éticas óbvias a experimentação em humanos não pode ser realizada.

O atual experimento tira proveito de um evento natural: A adoção em massa e estimulada pelo governo inglês de crianças romenas por famílias inglesas. Essas crianças tinham passado até então a vida toda em instituições e orfanatos, nos quais foram submetidas a privações como falta de higiene, má alimentação, negligência afetiva, cognitiva e falta de estímulos sociais.

Dentro do estudo, após as adoções, as crianças foram acompanhadas na Inglaterra até seus 22 anos de idade, sendo regularmente testadas para:

-Manifestações do espectro autista (Cabe ressaltar aqui que o autismo em sí não é causado por negligencias parentais, mas crianças que passaram por algumas privações na infância podem manifestar comportamentos semelhantes ao da síndrome autista).

-Desinibição social.

-Disfunções cognitivas.

-Falta de atenção ou hiperatividade.

-Desvios de conduta.

-Problemas emocionais.

As 98 crianças romenas foram divididas em dois grupos de acordo com o tempo de exposição aos maus tratos:as que passaram mais de 6 meses em orfanatos romenos e as que passaram menos de 6 meses. Já como grupo controle foram selecionadas 52 crianças procedentes de orfanatos ingleses e também adotadas por famílias inglesas.

Resultados e discussão

Os resultados estão resumidos nas tabelas abaixo. De forma geral, o estudo mostra que exposição a adversidade severa (deprivação institucional) pode ter um impacto psicológico importante e duradouro. Esses achados estão de acordo com testes animais relatados na literatura.

 

Figure 1 Developmental trajectories for neurodevelopmental and mental health symptoms Threshold defined as either two of three three-symptom domains endorsed or an IQ score of 80 or less. Rom>6=Romanian adoptees who spent more than 6 months in an institution. Rom<6=Romanian adoptees who spent less than 6 months in an institution. UK=UK adoptees. YA=young adult follow-up (22–25 years of age). http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(17)30045-4/fulltext
Figure 2 Proportion of individuals with more than one outcome (A) and number with outcomes that overlapped (B) throughout development Assessment waves were at 6 years of age, 11 years of age, 15 years of age, and YA (22–25 years of age). YA=young adult. ASD=autism spectrum disorder symptoms. DSE=disinhibited social engagement symptoms. IO=inattention and overactivity symptoms. CI=cognitive impairment. *Combines Romanian adoptees with less than 6 months deprivation and non-deprived UK adoptees. http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(17)30045-4/fulltext

 

Por mais que a presença de múltiplos problemas, com características diferentes crie uma amostragem clínica complexa, distinta e heterogênea, o espectro autista, engajamento social desinibido, desatenção e hiperatividade seguiram os mesmos padrões e parecem formar uma característica da privação institucional, todas persistindo até a fase adulta.

A disfunção cognitiva, por outro lado, mostrou padrão de remissão. Isso sugere que a deprivação institucional atua de forma diferente nesse quesito, ou que a família adotiva proporcionou um contexto que levou à remissão do problema. Independentemente do que tenha levado à remissão, os estudos demonstram a presença de neuroplasticidade ao longo do tempo.

Problemas emocionais se mostraram como uma manifestação tardia em indivíduos com privação institucional maior que 6 meses. Esse resultado pode indicar uma vulnerabilidade de longa data associada à sensibilização do sistema de estresse que só se expressa tardiamente.

É importante ressaltar que houve crianças sem problemas aos 6 meses, mas que desenvolveram problemas na idade adulta, indicando uma influência genética e epigenética como contribuintes para a resiliência e o desenvolvimento de problemas.

É importante ressaltar algumas limitações do estudo, como as informações limitadas sobre os possíveis riscos peri-institucionais e as informações limitadas sobre o uso de drogas, cigarro, etc., durante a gestação (apesar de que se acredita que dificilmente esses fatores alterariam as relações encontradas no estudo).

Portanto, o estudo mostrou que a privação institucional ao início da vida tem impacto, a longo prazo, para a saúde e bem-estar de boa parte das crianças. Questões como se esses problemas vão persistir durante toda a vida adulta ou se esses resultados podem ser generalizados para outras formas de abuso ou trauma na infância precisam ser melhor investigados.

Por fim, os resultados reforçam a importância de registrar adversidades na infância em fichas clínicas para melhor avaliação e diagnósticos de problemas psiquiátricos na vida adulta.

Child-to-adult neurodevelopmental and mental health trajectories after early life deprivation: the young adult follow-up of the longitudinal English and Romanian Adoptees study.

Sonuga-Barke EJS, Kennedy M, Kumsta R, Knights N, Golm D, Rutter M, Maughan B, Schlotz W, Kreppner Lancet. 2017 Apr 15;389(10078):1539-1548. doi: 10.1016/S0140-6736(17)30045-4. Epub 2017 Feb 23.PMID:28237264

Vitor Colpo e Bruno Ernandes-graduandos do curso de medicina UFGD

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