Cannabis  e o processo neuroinflamatório em pacientes com infecção pelo HIV , por Carolina Rangel de Lima Santos e Laísa Vieira Gnutzmann

 

Introdução

 

Os vírus da imunodeficiência humana (HIV-1 e HIV-2) são retrovírus pertencentes à família dos lentivírus. Essa família inclui vírus capazes de provocar infecções persistentes, com evolução lenta, produzindo degeneração progressiva do sistema imune (Brasil, 2014).

O vírus HIV infecta um subconjunto de células de imunidade, em que se incluem as células T e macrófagos circulantes, sendo necessária principalmente a expressão do receptor CD4 e dos correceptores CXCR4 e CCR5 em suas células hospedeiras (Stevenson, 2003; Gorry, 2011).

 

A entrada do HIV em uma célula hospedeira alvo começa com a interação da glicoproteina gp160 do envelope viral com o receptor. A gp160 é composta pela gp41 e gp120, que interagem com o receptor CD4 na superfície da célula hospedeira. A gp120 é a porção mais externa, responsável pela ligação do vírus com as células hospedeiras, e está ligada à gp41 que atravessa o envelope viral, promovendo a fusão entre o envoltório viral e a membrana celular, permitindo assim a penetração do vírus. (Brasil,2014). Após a entrada do vírus, são liberadas duas cadeias de RNA viral, e as enzimas virais protease, transcriptase reversa e integrase. O RNA viral é transcrito pela transcriptase reversa em dsDNA proviral, que é transportado para o núcleo e inserido no genoma da célula hospedeira através da enzima integrase. Após a transcrição do DNA da célula hospedeira, o DNA viral é transcrito (Kovalevich, 2012).

O Sistema Nervoso Central (SNC) é um importante alvo para o HIV e o vírus tem sido frequentemente detectado no líquido cefalorraquidiano (LCR) e tecido cerebral durante toda a evolução da infecção, independentemente de apresentar sintomas neurológicos (Christo, 2005). O vírus infecta e replica-se em macrófagos, micróglia e células da glia (Spector, 1993).

 

O vírus HIV entra no SNC atravessando a barreira hemato-encefálica usando macrófagos infectados, por um mecanismo tipo cavalo de Tróia (Lawrence, 2002). No cérebro, o vírus infecta as células gliais que secretam neurotoxinas levando a morte dos neurônios (Clifford, 2002). A micróglia e os próprios macrófagos são os principais alvos celulares para a infecção e replicação viral no cérebro, liberando os vírions no parênquima cerebral (Wiley, 1986).

 

As manifestações patológicas do SNC resultantes da infecção associada ao HIV são complexas e incluem uma gama de alterações. As características clínicas dos transtornos neurocognitivos associados ao HIV (HAND) variam de alterações neurocognitivas leves até a forma mais grave, a demência associada ao HIV (HAD). No entanto, em alguns pacientes com HIV, não são observadas alterações cognitivas. A eficácia da combinação com a terapêutica antirretroviral (cART) para controlar a carga viral periférica e permitir a recuperação do sistema imunológico tem um impacto significativo sobre a prevalência de HAND (Ellis,2007; Mothobi, 2012).

 

Cannabis sativa e o sistema endocanabinóide

A planta da maconha, Cannabis sativa, foi utilizada para fins terapeuticos e  de recreação por muitos anos devido aos seus efeitos medicinais e psicotrópicos. Cannabis é composta por várias substâncias, dentre elas o grupo de compostos terpenóides, referidos como canabinóides.

Os canabinóides sintéticos já são utilizados para estimular o apetite, diminuir náuseas e dor em pacientes terminais, mas também possuem propriedades imunomoduladoras, que podem ser prejudiciais para a saúde humana.  Além disso, há evidências sugerindo que os canabinóides possuem atividade anti-inflamatória, com potencial terapêutico  em doenças neuroinflamatórias. Eles penetram pela barreira hemato-encefálica (BHE) e exercem seus efeitos através dos receptores de canabinóides. O principal receptor canabinóide, alvo de neuroinflamação é receptor canabinóide do tipo 2 (CB2). Este receptor tem sido identificado durante processos inflamatórios  com ação de reduzir a produção de citocinas pró-inflamatórias pela microglia, que são os  macrófagos residentes do cérebro e que desempenham um papel importante em muitos processos neuropatológicos. (Cabral, Griffin-Thomas, 2008).

A planta Cannabis sativa apresenta mais de 60 diferentes constituintes químicos chamados canabinóides (Dewey, 1986; Hollister, 1986). Os canabinóides incluem canabidiol, cannabinol, e Δ-9-THC (delta -9-tetra hidrocanabinol- o principal constituinte psicoativo). Foi descrito um sistema de canabinoides endógenos (ou seja, neurotransmissores que o cérebro humano produz), constituído pelas moléculas de anandamida e 2-arachidonylglycerol, derivadas de ácido araquidónico, (Felder et. al., 1996). Os dois canabinóides endógenos possuem meias-vidas curtas e provavelmente funcionam como neuromoduladores  próximos ou no seu local de síntese. Efeitos fisiológicos   são mediados pela sua ligação a dois subtipos principais do receptor de canabinóide, CB1 e CB2 (Felder, Glass., 1998; Pertwee, 1997) .

 

Infecção pelo HIV e SNC

A infecção do  sistema nervoso central (SNC) pelo HIV se associa a desordens neuropsicológicas, que se expressam nas áreas motora, comportamental e cognitiva e que podem aparecer precoceou tardiamente (Saha R.N. et al., 2003). A ação do HIV no SNC acontece por diferentes mecanismos, pelos quais o vírus atua como agente neurotóxico ou neurotrópico. Em especial, ocorre ativação da micróglia que passa a liberar citocinas pró-inflamatórias, como TNF-α, interleucina (IL) -1β, IL-6 (Walter et al., 2004).

O sistema de sinalização endocanabinóide realiza um importante papel sobre as células gliais, de forma que agonistas canabinóides reduzem a liberação de citocinas pró-inflamatórias e com isso o dano ao SNC, causado, ao menos em parte, pela inflamação continuada. (Grundy et al., 2001; Walter et al., 2004).

O potencial anti-inflamatório dos agonistas canabinóides nas desordens neurodegenerativas, tem apresentado grande relevância em vários estudos que demonstraram efeitos antiinflamatórios nos agonistas seletivos dos receptores CB1 ou nos receptores seletivos CB2 e também dos agonistas canabinóides não seletivos.  Esta capacidade é resultado de um efeito protetor de morte sobre os astrócitos e oligodendrócitos dos canabinóides, o que beneficia os neurónios. Por outro lado, os agonistas canabinóides, possivelmente por ativarem os receptores CB1, controlam a produção de citocinas pró-inflamatórias pelas células gliais, como exemplo IL-1, TNF- α, IL-6 e IL-12 que desenvolvem importante papel frente aos danos neurodegenerativas/neuroinflamatórias, (Grundy et al., 2001).

 

As propriedades anti-inflamatórias dos agonistas canabinóides incluem a ativação de receptores CB2, sugerindo função adicional para este receptor nos processos inflamatórios. Estudos demonstram que os receptores CB2 desenvolvem funções importantes em algumas etapas fundamentais como a proliferação de células da microglia e migração em locais de lesões neuroinflamatórias que estão envolvidas nas fases iniciais da ativação da microglia em resposta a infecção, inflamação ou dano tecidual (González-Scarano e Martin-García, 2005).

A presença de receptores CB2 no cérebro humano sem nenhuma patologia é limitada, mantendo uma pequena população identificadas como macrófagos perivasculares (Núnez et al., 2004).São consideradas parte da barreira hematoencefálica e a localização seletiva, ligada na parede externa dos vasos sanguíneos, privilegia na participação do controle da entrada de elementos exógenos no SNC. São definidas como células temporariamente residentes no SNC, logo substituídas por monócitos. A encefalite produzida pelo HIV demonstra importante papel clínico na demência. Estes pacientes apresentam vários sintomas cognitivos e motores, como fraqueza nos membros inferiores, perda de memória, apatia, isolamento social e alteração de personalidade. Na forma mais avançada e severa, a patologia leva o paciente apresentar progressivamente um estado vegetativo (González-Scarano e Martín-García, 2005). Nos dias atuais acredita-se que a introdução do HIV no SNC segue um planejamento semelhante ao “cavalo de Troia” (Kaul et al. 2001), onde os monócitos periféricos infectados, responsáveis pela substituição dos macrófagos perivasculares atuam transportando o vírus. Com isso, observa-se que os monócitos que se transformam em macrófagos perivasculares originam o vírus encontrado no cérebro (González-Scarano e Martín-García, 2005). Uma vez dentro do SNC, os macrófagos infectados tornam-se a fonte do vírus que atua na microglia, poupando os neurónios. No final, os mecanismos como stress oxidativo, produção e liberação de citocinas pró- inflamatórias, e danos diretos causados por proteinas virais, levam à neurodegeneraçãoe sintomas clínicos associados (Gonzáles-Scarano e Martín-Garcia, 2005). Da mesma forma acontece com outros tipos de receptores acopolados a proteinas G, o CB2 é regulado pelos macrófagos perivasculares como resposta ao processo inflamatório desencadeado pelo HIV. Amostras de cérebros humanos e de macaco infectados foram utilizados e observado somente as amostras de indivíduos infectados apresentandoencefalite onde mostravam altos níveis na expressão de CB2, diferente em indivíduos controles, ou seja, infectados porem sem encefalite. A expressão elevada de CB2 foi evidenciada nos macrófagos perivasculares e tufos da microglia (Benito et al., 2005). É importante ressaltar que os linfócitos T infiltrados mostraram alta imunorreatividade para os receptores CB2. Quando ativados os receptores CB2, eles inibem a migração transendotelial de células T e de linfócitos T humanos primários, nainterferência com o sistema CXCL12/CXCR4. Conclui-se com isso que os receptores CB2 alteram a produção de moléculas inflamatórias na micróglia, selecionando a entrada de células periféricas no SNC e participando na resposta inflamatória contra a infecção viral no cérebro (Ghosh, et al. 2006).

 

 

Considerações finais

O HIV não infecta diretamente os neurônios, mas prejudica sua função através da indução da produção de fatores inflamatórios pela micróglia infectada e ativada . Uma melhor compreensão dos mecanismos moleculares da disfunção neuronal durante a progressão da infecção pelo HIV permitirá estratégias de tratamento mais específicas e eficazes. Há indícios de que os canabinóides poderiam atuar diminuindo o processo inflamatório causado pelo HIV, porém apesar de efeitos benéficos comprovados, a pesquisa sobre a ação dos canabinóides não significa advogar a favor do uso terapêutico da maconha. A maconha é uma planta complexa com inúmeros princípios ativos que merece ser discutida à parte. O assunto desse texto é a ação anti-inflamatória de neurotransmissores canabinóides que o nosso próprio cérebro produz e a perspectiva do uso desse mecanismo na proteção do cérebro de pacientes com infecção pelo HIV.

 

Carolina Rangel de Lima Santos e Laísa Vieira Gnutzmann-discentes do curso de mestrado em ciências da saúde-FCS-UFGD

 

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