O QUE AS ADVERSIDADES NA INFÂNCIA TÊM PARA NOS DIZER SOBRE A PREVENÇÃO DO HIV? – por Brenda Barzotto Arnold e Murilo Higa Cimatti de Andrade Kratz Resenha do artigo: Fang, L., Chuang D.M., Lee, Y. Adverse childhood experiences, gender, and HIV risk behaviors: Results from a population-based sample. Preventive Medicine Reports 4 (2016) 113-120.

A identificação de características preditivas em um indivíduo é foco em diversas áreas do conhecimento humano. Na educação, podemos tomar como exemplo os diversos perfis de alunos e suas necessidades, que levam ao desenvolvimento de teorias e formulação de estudos para obter o máximo de desenvolvimento intelectual possível para aquela pessoa. Na criminologia, também, é útil ter em mente perfis de criminosos e potenciais infratores para, assim, formular as melhores estratégias de abordagem, negociação, investigação, etc. Na área da saúde, o foco deste texto, a formulação de perfis e identificação de características que aumentam as chances de uma patologia são de importância imensurável, tanto em prevenção quanto em tratamento. Em relação a uma doença até então incurável, como o HIV, o fortalecimento de políticas de prevenção é a arma mais poderosa para se alterar a atual epidemiologia, o aumento expressivo e preocupante de infectados – de 2007 até junho de 2017, foram notificados no Sinan 194.217 casos de infecção pelo HIV no Brasil; além disso, é registrado, anualmente, uma média de 40 mil novos casos de AIDS nos últimos cinco anos1.

Tendo isso em mente, os autores do estudo “Adverse childhood experiences, gender and HIV risk behaviors: Results from a population-based sample”2 tentaram detalhar os fatores que provavelmente aumentam as chances de comportamento de risco para HIV. Seguindo a tendência de estudos anteriores, o artigo traz um foco principal: experiências adversas na infância (Adverse Childhood Experience, ou ACE). Logo, foram testadas duas hipóteses: 1) Cada forma individual de ACE está positivamente associada a comportamentos de risco para o HIV; 2) O número de ACEs está positivamente ligado aos riscos de HIV.

O risco para adquirir o HIV depende muito do tipo de comportamento do indivíduo, sua exposição ao HIV, com chances maiores ou menores de transmissão. Tais comportamentos de risco para o HIV incluem o compartilhamento de agulhas e seringas; fazer sexo anal, pênis-vaginal ou oral sem camisinha; troca de sexo por drogas ou dinheiro; transfusão sanguínea; exposição vertical; presença de outras DSTs, entre outros3. No entanto, é impossível estudar e entender esse ciclo de transmissão sem compreender as questões psicossociais de um indivíduo, uma vez que os comportamentos de risco estão intimamente ligados a questões como depressão e ideação suicida, angustia psicológica, uso de álcool e drogas, suporte social interrompido, e experiência de violência interpessoal. Nesse cenário que as adversidades da infância – abuso, negligencia e disfunção familiar – merecem grande atenção. ACEs têm sido ligadas a alterações dos sistemas neurobiológicos de resposta ao estresse, gerando danos a longo prazo tanto na saúde física, como canceres, asma, doença pulmonar crônica e mortalidade prematura; assim como na saúde mental, com distúrbios psicológicos, abuso de substâncias, comportamentos impulsivos e violentos. Fatores que por si só podem resultar em comportamentos de risco para o HIV.

Figura 1 – As três formas de ACEs: Abuso (físico, emocional/verbal e sexual); Negligência (física e emocional/verbal); Disfunção familiar (doença mental, parente encarcerado, violência na família, abuso de substâncias e divórcio). Fonte: Centers for Disease Control and Prevention.

 

 

Figura 2 – Consequências da ACE recaem tanto no comportamento (sedentarismo, ingestão de álcool, uso de tabaco e drogas, falta ao trabalho), quanto na saúde física e mental (obesidade severa, diabetes, depressão, tentativa de suicidio, DSTs, doença cardíaca e pulmonar, câncer, derrame e fraturas ósseas). Fonte: Centers for Disease Control and Prevention.

Assim, utilizando o Brief Risk Factor Surveillance Survey (BRFSS) de 2012, o presente estudo conduziu análises especificas de gênero para entender a relação entre uma série de adversidades infantis e o comportamento de risco do HIV. Foi analisado também o impacto cumulativo de múltiplos ACEs, porque diferentes formas de ACEs são mais prováveis de ocorrerem simultaneamente. A amostra consistiu de 39 434 indivíduos (19 110 homens e 20 324 mulheres).

O programa de dados 2012 BRFSS é um inquérito dos Estados Unidos desenvolvido em colaborações entre o US. Center for Disease Control and Prevention (CDC) e os departamentos de saúde pública. Usando-se questionários padronizados, pergunta-se, via telefone fixo ou celular, para adultos maiores de 18 anos, que vivem em domicílios, seus comportamentos de risco sobre condições de saúde crônicas, bem como suas práticas preventivas de saúde. Cinco estados (Iowa, Carolina do Norte, Oklahoma, Tennessee e Wisconsin) incluíram módulos sobre ACE em seus BRFSS 2012.

Foram avaliadas 8 formas de ACEs que aconteceram antes dos participantes terem 18 anos: 1) Morar com alguém com problemas mentais; 2) Morar com alguém que fazia abuso de álcool ou drogas; 3) Morar com alguém que foi encarcerado; 4) Pais separados ou divorciados; 5) Testemunhar violência física em casa; 6) Sofrer de abuso físico; 7) Sofrer de abuso verbal; 8) Sofrer de abuso sexual. Todas as respostas foram de SIM ou NÃO. Além disso, foi feita uma pergunta de SIM ou NÃO para cada um dos seguintes temas: já foi diagnosticado com depressão; toma bebidas alcoólicas; usa tabaco/fuma. Foram feitas ainda questões demográficas como idade, sexo, raça, status civil, nível educacional e salário anual. Por fim, para avaliar os comportamentos de risco para o HIV, perguntou-se: “Você usou drogas intravenosas? Foi tratado por uma doença sexualmente transmissível ou venérea? Deu ou recebeu dinheiro ou drogas em troca de sexo? Fez sexo anal sem um preservativo?”.

O estudo providencia evidencias na relação entre ACE e comportamento de risco para o HIV no adulto: aproximadamente 60% dos participantes vivenciaram ao menos uma ACE, e mais que 10% vivenciaram 4 ou mais formas de ACEs. Como esperado, a maioria dos eventos adversos estão associados com aumento das chances de comportamento de risco para o HIV tanto por homens quanto por mulheres, sendo que as chances aumentam conforme o número de ACEs também aumenta, sugerindo que crescer em um ambiente familiar rodeado por abusos e eventos estressores pode predispor indivíduos a comportamentos de risco para o HIV. Mais que isso, os autores identificaram alguns padrões de gênero específicos.

Pesquisas prévias mostram que mulheres estão mais predispostas a sofrer abusos sexuais na infância e a testemunharem violência doméstica, enquanto homens mais provavelmente irão reportar abuso físico na infância e abuso de substâncias por membros familiares. Se as manifestações de ACE diferem quanto ao gênero, isso permanece inconclusivo. Alguns estudos sugerem que não há diferença de gênero entre o abuso sexual infantil e as consequências a longo prazo para a saúde física e mental. Contudo, outros estudos indicam que, comparados aos homens, as mulheres que experimentaram ACEs são mais propensas a sentir falta de esperança, a fumar cigarros e a ter depressão e ansiedade quando adultas; enquanto os homens costumam sofrer mais com abuso de álcool e comportamento antissocial quando adultos.

No trabalho em questão, diferenças estatísticas significantes foram encontradas entre homens e mulheres. As mulheres participantes são mais velhas, mais delas são casadas, completaram o colegial, tem renda mais baixa e já tiveram depressão. Mais mulheres que homens, em sua infância, viveram com alguém deprimido, doente mental ou suicida, viveram com alguém que fazia uso de substancias, testemunharam violência interpessoal, vivenciaram abuso sexual, e experimentaram quatro ou mais ACEs. Em contrapartida, mais homens bebem moderadamente ou pesado e fumam cigarros, e apresentaram comportamento de risco no último ano. Para ambos os sexos, o comportamento de risco para o HIV tende a ocorrer entre os mais novos, não-brancos, não casados, com menor renda, que tem depressão, bebe e fuma.

Outro fator interessante observado foi que as chances de comportamento de risco para o HIV para homens são maiores entre aqueles que sofreram abuso sexual na infância; seguido da exposição infantil à violência interpessoal; membros da família que faziam abuso de substancias; abuso físico; abuso verbal; e divórcio dos pais. Doença mental no ambiente familiar e encarceramento não foram significativos para aumentar as chances de comportamento de risco. Já para as mulheres, aquelas que vivenciaram abuso sexual na infância também tiveram maiores chances de apresentar tais comportamento; seguido por viver com algum membro familiar que abusava de substancias; abuso verbal; encarceramento de um membro familiar; abuso físico; viver com alguém com doença mental; e violência interpessoal. Separação dos pais ou divórcio não foram significativos. Alguns estudos na literatura, porém, discordam e afirmam que os efeitos negativos a longo prazo de uma separação dos pais são similares para ambos os sexos.

A associação entre o número de adversidades na infância e o comportamento de risco para o HIV variaram de acordo com o gênero também. Para os homens, a cada ACE a mais, maior a possibilidade de apresentar comportamento de risco. Para as mulheres, apenas com 3 ACEs ou mais que as chances de comportamento de risco aumentavam concomitantemente.

Várias explicações podem ser relevantes para entender essas diferenças. O enfrentamento do estresse pode estar vinculado a papéis tradicionais de gênero, em que descrevem a mulher como dependente e emotiva, enquanto o homem é independente e racional. Essa percepção pode afetar as estratégias de enfrentamento, na qual as mulheres usam estratégias focalizadas na emoção; e os homens, estratégias focalizadas na razão e no desapego para lidarem com eventos familiares estressores. Essa diferença pode mediar a relação entre as adversidades da infância e o comportamento de risco para o HIV no adulto, uma vez que o enfrentamento centrado na emoção resulta em uma adaptação mais positiva ao longo do tempo do que a estratégia de distanciamento.

Além do mais, receber o suporte de amigos, família e comunidade é o mecanismo chave de proteção contra o estresse psicológico e o risco sexual. Mulheres, segundo algumas pesquisas referidas pelos autores, teriam maior apoio e recursos sociais que homens para lidarem com seus estresses psicológicos e, que tal suporte, funcionaria como um compensador das experiências de adversidade na infância. Isso vai de acordo com o encontrado nesse trabalho, em que as mulheres apresentam maiores chances de comportamento de risco para o HIV apenas com 3 ACEs ou mais. Todavia, há dados que discordam e evidenciam que são os homens que recebem maior apoio de grupos sociais4. Logo, estudos futuros precisam compreender melhor os mecanismos através dos quais os ACEs têm impacto na saúde adulta por gênero. Esse conhecimento pode facilitar o desenvolvimento de intervenções específicas de gênero que ajudem a reduzir o impacto doloroso a longo prazo do trauma na infância.

Dentre as limitações dessa pesquisa, salienta-se, primeiramente, que foi realizada com cinco estados norte-americanos, predominantemente rurais, o que pode potencialmente limitar a sua generalização. Segundo, subnotificação pode acontecer, já que os participantes auto reportaram suas exposições às ACEs e comportamento de risco ao HIV. Terceiro, BRFSS não questiona sobre as orientações sexuais dos participantes, assim, não é possível estudar além da dicotomia mulher/homem. Quarto, a variante do comportamento de risco ao HIV foi medida por uma única questão que combina quatro tipos de comportamentos distintos (uso intravenoso de drogas, tratamento para DST, receber dinheiro por sexo, e teve sexo anal sem camisinha), sendo impossível conduzir uma análise separada que examina a associação entre ACE e cada comportamento de risco por si. Por fim, a informação sobre quando o comportamento de risco para o HIV aconteceu não estava disponível, mas considerando que todos os eventos adversos ocorreram na infância, é mais provável que os comportamentos de risco tenham ocorrido após as ACEs.

Tal artigo torna-se, portanto, uma prova científica de que a infância deve ser cuidada, e que questões sociais, financeiras e psicológicas importam para a preservação da saúde. A maioria dos programas de prevenção do HIV/AIDS focam na redução dos comportamentos de risco, mas ainda não se concentraram nos riscos psicológicos, como as adversidades infantis. Os autores argumentam que prestadores de serviços e agências de saúde, no mínimo, devem entender a prevalência do trauma e os seus efeitos secundários sobre os aspectos físicos, psicológicos e emocionais no indivíduo, e fornecer cuidados responsivos em conformidade. Essa filosofia de serviço, em conjunto com as estratégias de prevenção da HIV/AIDS, pode potencialmente ter uma resposta positiva à prevenção do HIV endêmico.

Brenda Barzotto Arnold e Murilo Higa Cimatti de Andrade Kratz-alunos de graduação do curso de Medicina da Faculdade de Ciências da Saúde-UFGD

 

 

REFERÊNCIAS

  1. Ministério da Saúde. Boletim epidemiológico HIV/AIDS 2017. Ministério da Saúde – Secretaria de Vigilância em Saúde – Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (2017).
  2. Fang L., Chuang D.M., Lee Y. Adverse childhood experiences, gender, and HIV risk behaviors: Results from a population-based sample. Preventive Medicine Reports 4 (2016) 113-120.
  3. Patel P., Borkowf C.B., Brooks J.T. et al. Estimating per-act HIV transmission risk: a systematic review. AIDS. 2014. doi: 10.1097/QAD.0000000000000298.
  4. Soman S., Bhat S.M., Latha K.S., Praharaj S.K. Gender Differences in Perceived Social Support and Stressful Life Events in Depressed Patients. East Asian Arch Psychiatry. 2016 Mar;26(1):22-9.

 

 

One thought on “O QUE AS ADVERSIDADES NA INFÂNCIA TÊM PARA NOS DIZER SOBRE A PREVENÇÃO DO HIV? – por Brenda Barzotto Arnold e Murilo Higa Cimatti de Andrade Kratz Resenha do artigo: Fang, L., Chuang D.M., Lee, Y. Adverse childhood experiences, gender, and HIV risk behaviors: Results from a population-based sample. Preventive Medicine Reports 4 (2016) 113-120.

  • 01/02/2018 em 14:39
    Permalink

    Esse artigo é muito interessante e pertinente porque falou algo que temos questionado há anos: fatores psicológicos. Geralmente negligenciados por atuantes preventivos de doenças como o HIV. Esse tipo de informação precisa chegar aos centros de acolhimento e outros pontos de prevenção! Parabéns!!

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *