Replicadores, Genes e Memes: A Religião como Vírus da Mente em Richard Dawkins, por Maxwell Morais de Lima Filho.
Replicadores, Genes e Memes:
A Religião como Vírus da Mente em Richard Dawkins
Maxwell Morais de Lima Filho
Universidade Federal de Alagoas/Brasil
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo
Nem mudar água pura em vinho tinto
O milagre é acreditarem nisso tudo!
Mário Quintana
1 A Semente que Vingou
O zoólogo Clinton Richard Dawkins inicia o seu livro O Gene Egoísta afirmando que só quando uma espécie conhece o porquê de sua existência é que se chega à maturidade intelectual do planeta. No caso da Terra, passaram-se bilhões de anos até que Charles Robert Darwin descobrisse o real motivo de nossa presença planetária. Dawkins pertence à linhagem de pensamento darwinista, mas não podemos esquecer que a sua concepção é uma descendente que sofreu modificações, distando em mais de um século da proposta delineada n’A Origem das Espécies. Ademais, por ser um ardente defensor do progresso evolutivo, supomos que Dawkins assumiria sem constrangimentos que a paisagem d’O Gene Egoísta é mais verdadeira, mais completa e superior em relação ao panorama original desvelado na obra magna de Darwin[1]. Não é ocioso registrarmos que isso não é consensual, nem que haja progresso evolutivo, nem que a visão contida no livro do biólogo queniano[2] seja superior ao horizonte teórico desvelado pelo naturalista inglês.
A visão do paleontólogo norte-americano Stephen Jay Gould, por exemplo, diverge em muitos pontos cruciais da que é advogada por Dawkins, e uma dessas discordâncias diz respeito ao progresso evolutivo, assumida por este último e negada por aquele. Nesse quesito, Gould (2001, pp. 192-3) é bastante enfático quando pondera que
A seleção natural só fala de “adaptação a ambientes locais em mudança”; o cenário não inclui qualquer declaração sobre progresso – nem uma afirmação desse tipo poderia ser deduzida do princípio da seleção natural. O mamute peludo não é um elefante cosmicamente melhor ou superior de um modo geral. Seu único “aperfeiçoamento” é inteiramente local; ele se sai melhor em climas frios (mas o seu ancestral com pouquíssimos pelos permanece superior em climas mais quentes). A seleção natural só pode produzir a adaptação a ambientes imediatamente próximos (e em mudança).
Dawkins (2005e, p. 370) não deixa por menos e carrega com fortes tintas a sua réplica, afirmando que a crítica de Gould, apesar de válida para o antropocentrismo, é completamente inócua para a sua ideia de progresso evolutivo “adaptacionista”:
Gould se aproxima perigosamente da luta contra os moinhos de vento da qual ele, já antes, fez seu estilo pessoal de arte. Por que um darwiniano sensato teria esperado que a maioria das linhagens apresentasse aumento na complexidade anatômica? Não me parece nem um pouco evidente que todos aqueles que seguem a filosofia adaptacionista o fariam. Sabemos que as pessoas inspiradas pela vaidade humana decerto esperariam isso (e Gould está correto ao afirmar que, historicamente, muitos incorreram nesse vício).
Esse rápido excurso histórico serve para nos alertar que o progresso evolutivo é um pano de fundo das obras de Dawkins, e seu primeiro best-seller, como veremos, não é exceção; voltemos, portanto, a ele. Mesmo ciente de seu acentuado débito intelectual com o naturalista inglês, Dawkins não tem por objetivo expor as ideias gerais de Darwin[3] n’O Gene Egoísta. Na verdade, o autor do livro se vale de refinados conhecimentos da Genética, da Biologia Molecular e da Teoria dos Jogos para examinar os fundamentos biológicos do egoísmo e do altruísmo. O livro contém a pretensão de defender que a “lei[4] fundamental do egoísmo do gene” explana corretamente ambos os comportamentos encontrados no mundo vivo: o altruísta e o egoísta. Em resumo, ele defende que nós, e todos os outros animais, somos máquinas criadas pelos nossos genes. Como os bem-sucedidos gângsters de Chicago, nossos genes sobreviveram – em alguns casos, por milhões de anos – num mundo altamente competitivo. Isso nos permite esperar deles algumas qualidades. Sustentarei a ideia de que uma qualidade predominante que se pode esperar de um gene bem-sucedido é o egoísmo implacável. Em geral o egoísmo do gene originará um comportamento individual egoísta. No entanto, […] existem circunstâncias especiais em que um gene pode atingir mais efetivamente seus próprios objetivos egoístas cultivando uma forma limitada de altruísmo, que se manifesta no nível do comportamento individual (DAWKINS, 2007a, p. 39).
Nesse trabalho, seguiremos de perto a linha argumentativa apresentada n’O Gene Egoísta para exprimir o que Dawkins entende por replicadores e para explicitar a sua defesa do gene como unidade de seleção. A seguir, veremos que a singularidade dos seres humanos é atribuída à nossa cultura, cuja evolução ocorre pela transmissão de replicadores denominados memes. Logo depois, mostraremos que as noções de memes e de evolução cultural são aplicáveis às Religiões, resultando na interpretação negativa que Dawkins atribui a esses sistemas culturais. Finalmente, confrontaremos os pensamentos de Dawkins e de Gould sobre o tipo de relacionamento estabelecido entre a Religião e a Ciência.
2 No Princípio Eram as Moléculas: Replicadores e Genes como Unidades de Seleção
O mecanismo de seleção natural proposto por Wallace e Darwin[5] é uma grande descoberta científica que nos auxilia a compreender como a complexidade pode se originar da simplicidade. A seleção natural associada a outros mecanismos evolutivos nos proporcionam uma explicação abrangente sobre como se deu a evolução de bactérias, fungos, protistas, vegetais, animais e – por que não? – vírus. Em realidade, para Dawkins (2007a, p. 55), o principal mecanismo evolutivo nada mais é do que um caso da lei genérica de “sobrevivência do estável”: “As coisas que vemos ao nosso redor, e que julgamos que requerem uma explicação – as pedras, as galáxias, as ondas do mar –, são todas arranjos mais ou menos estáveis de átomos”. Os átomos se agrupam em moléculas de variados tamanhos e complexidades, como uma simples molécula de oxigênio (O2), um cristal de diamante – que é estruturalmente simples, a despeito de sua avantajada dimensão – ou uma molécula de DNA.
Dawkins inicia o seu livro com um “mito da criação”[6]: apesar dos cientistas desconhecerem os pormenores, ele assume que há bilhões de anos surgiu, por acidente e sem qualquer tipo de propósito, um tipo de molécula com capacidade reprodutiva: o replicador. Provavelmente, o replicador era uma molécula complexa (polímero) constituída por numerosas unidades simples (monômeros), as quais se encontravam presentes no ambiente circundante, chamado de caldo ou sopa primordial. A ordem sequencial dos monômeros do replicador teria funcionado como um protótipo para direcionar, devido a afinidades químicas específicas, o processo de replicação:
Pense no replicador como uma matriz ou um modelo padrão. Imagine-o como uma molécula grande, constituída por uma cadeia complexa de vários tipos de blocos moleculares. Esses pequenos blocos de construção encontravam-se abundantemente disponíveis no caldo em que flutuava o replicador. Agora suponha que cada bloco apresenta afinidade com outros blocos do mesmo tipo. Então, sempre que um bloco, vindo do caldo, se encontrar com uma parte do replicador com a qual tenha afinidade, tenderá aderir-se a ele. Os blocos que se ligam desse modo se arranjarão, automaticamente, numa sequência idêntica à do próprio replicador (DAWKINS, 2007a, p. 59).
Esta descrição permite que vislumbremos o motivo do espalhamento de cópias pelo ambiente após o surgimento do replicador. Devido à imperfeição do processo reprodutivo, muitas cópias diferiam em maior ou menor grau entre si. O erro de duplicação, todavia, resultou na eventual produção de cópias superiores ao tipo original – mais “longevas” ou “fecundas”, por exemplo –, e esse aperfeiçoamento se refletiu na “descendência” molecular. Trocando em miúdos, desencadeou-se uma evolução molecular mediante a competição dos replicadores, processo esse que resultou simultaneamente na eliminação das moléculas infecundas e na preservação dos arranjos químicos estáveis e prolíficos:
À medida que se formavam e se propagavam cópias imperfeitas, a sopa primordial foi se enchendo, não de uma população de réplicas idênticas, e sim de diversas variedades de moléculas replicadoras, todas elas “descendentes” do mesmo ancestral. Seriam algumas variedades mais abundantes do que outras? É quase certo que sim. Algumas variedades seriam inerentemente mais estáveis do que outras. […] Tais tipos se tornavam relativamente mais numerosos na sopa, não somente como consequência lógica e direta da sua “longevidade”, mas também porque teriam muito tempo disponível para produzir cópias de si mesmas. Desse modo, os replicadores de alta longevidade tenderiam a ser mais numerosos e, mantendo-se constante a influência de outros fatores, passaria a haver uma “tendência evolutiva” em direção a uma maior longevidade na população de moléculas (DAWKINS, 2007a, p. 62).
No fim das contas, a disputa pela escassa matéria-prima foi a “responsável” pelo surgimento de propriedades moleculares vantajosas. Não é absurdo pensarmos que, em algum momento, determinada linhagem molecular foi favorecida pela construção de sua própria “máquina de sobrevivência”; a barreira erguida garantiu ao replicador maior proteção físico-química, cujo reflexo se traduziu positivamente na sobrevivência e na reprodução de suas cópias:
Talvez as primeiras células vivas tenham surgido assim. Os replicadores começaram não apenas a existir, mas também a construir invólucros para si mesmos, veículos capazes de preservar a sua existência. Os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram máquinas de sobrevivência no interior das quais pudessem viver. De início, é provável que tais máquinas não passassem de um revestimento de proteção. No entanto, ganhar a vida ficou gradativamente mais difícil à medida que surgiam novos rivais com máquinas de sobrevivência melhores e mais eficientes. Essas máquinas se tornaram maiores e mais elaboradas, num processo cumulativo e progressivo (DAWKINS, 2007a, pp. 66).
Após uma longeva marcha evolutiva, podemos hoje enxergar os descendentes dos replicadores originais, os genes[7]. Na falta de uma definição consensual, o livro se edifica sobre o conceito de gene estabelecido pelo biólogo norte-americano George Christopher Williams. De acordo com essa proposta, um gene consiste num segmento de material genético duradouro o suficiente para ser passível de seleção intergeracional, ou, na terminologia do próprio Dawkins (2007a, p. 79): “um gene é um replicador que reproduz cópias de alta fidelidade”. Como vimos, os replicadores hodiernos são bem mais complexos do que seus predecessores e estão dispostos no interior de um ou de vários veículos de sobrevivência, conforme estejamos nos referindo a organismos uni ou pluricelulares. Um bode, por exemplo, nada mais é do que um conjunto de minúsculas máquinas de sobrevivência (células) que se agrupam num colossal robô (corpo); e os replicadores (genes) estão no comando, independentemente se estamos falando de uma única célula ou do corpo como um todo. Dawkins vai além e afirma que o real motivo da existência dos seres vivos, inclusive dos seres humanos, está na preservação e na propagação dos genes[8]:
Eles estão dentro do leitor e de mim. Eles nos criaram, o nosso corpo e a nossa mente, e a preservação deles é a razão última da nossa existência. Percorreram um longo caminho, esses replicadores. Agora, respondem pelo nome de genes, e nós somos suas máquinas de sobrevivência (DAWKINS, 2007a, p. 66).
Por questões de espaço, não detalharemos todos os fundamentos da teoria do gene egoísta. Todavia, registramos que a visão de Dawkins acerca do nível em que opera a seleção natural se distancia do que Darwin[9] defendia. Para Dawkins, e nisso consiste o núcleo de sua argumentação, o gene é a unidade fundamental a ser selecionada no transcorrer do processo evolutivo. Os marcos teóricos d’O Gene Egoísta foram levantados após a morte do naturalista inglês e provêm de renomados biólogos do século XX, tais como Ronald Fisher, William Hamilton, George Williams, Robert Trivers e John Maynard Smith.
Falemos rapidamente sobre o papel central da reprodução para a teoria genecêntrica. Pensemos inicialmente na reprodução de nossa própria espécie. Cada ser humano é o resultado da união das células sexuais materna (óvulo) e paterna (espermatozoide). Por conseguinte, dos 46 cromossomos que possuímos em cada célula somática, 23 têm origem materna e 23, paterna. Dessa maneira, a probabilidade de que o gene G presente nas células de Dom Pedro II tenha sido herdado de Dona Maria Leopoldina é de 50%; de modo análogo, concluímos que a Princesa Isabel tinha 50% de chance de ter o referido gene.
Aproveitemos o raciocínio acima para contrastar com um caso mais raro nos animais. Quando uma rainha de abelha melífera faz seu voo nupcial e copula com os zangões, temos como resultado que os muitos óvulos fecundados produzirão as fêmeas da próxima geração; a depender da alimentação recebida, algumas poucas se tornarão rainhas (fêmeas férteis) e a imensa maioria se tornará operária (fêmea estéril). Já os óvulos que não foram fecundados irão se desenvolver em zangões, processo conhecido como partenogênese. Destarte, como as fêmeas têm dois conjuntos cromossômicos, chamamo-las de diploides; denominamos de haploides, em contrapartida, os zangões, pois eles só possuem um conjunto cromossômico proveniente do óvulo materno[10]. Qual a importância de explicitarmos tudo isso? A nossa justificativa se deve ao seguinte: se a seleção natural atuasse sobre os indivíduos, sustenta Dawkins, não conseguiríamos explicar por que existe a casta das operárias. Dito de outra maneira, como explicar, do ponto de vista evolutivo, a origem e a persistência de organismos que vivem para o benefício alheio – no desempenho das funções de proteção, de alimentação, de limpeza e de cuidado com a prole – sem deixar um único descendente sequer? Ficamos estupefatos por tamanha devoção e farto altruísmo, mas necessitamos de algo além da nossa surpresa para resolver esse quebra-cabeça biológico.
O que a teoria advogada por Dawkins pretende mostrar é que a verdadeira causa por trás desse aparente altruísmo se localiza no comportamento egoístico do gene. Valendo-se de cálculos minuciosos, os defensores da teoria genecêntrica chegam à conclusão de que uma operária é geneticamente mais semelhante a uma irmã operária do que à sua mãe (rainha) ou ao seu pai (zangão). Tendo isso por base, o partidário dessa teoria resguarda ao gene o papel de unidade a ser selecionada, afirmando, além disso, que o sucesso dessa entidade bioquímica não se restringe à reprodução do indivíduo ao qual pertence. No caso específico da operária, o seu conjunto gênico será mais bem-sucedido – no sentido de maximização de cópias –, se ela contribuir com o nascimento de mais irmãs, que com ela compartilham a maioria de seus genes. Na perspectiva do gene egoísta, a abelha[11] não passa de um veículo para a transmissão do que de fato importa: a informação biológica contida no material genético[12]. Como realçaremos a seguir, Dawkins se utiliza dessa concepção genética para estabelecer analogias com os recentes replicadores culturais por ele chamados de memes.
3 Falando a Língua dos Homens e Silenciando a dos Anjos: Os Memes e a Evolução Cultural
Dawkins assevera que a nossa excepcionalidade perante as demais espécies biológicas é devida à cultura; a despeito das transmissões culturais que encontramos em aves e em outros mamíferos, tais amostras não passam de “curiosidades interessantes” se comparadas às que se dão nos humanos. Feita essa advertência, ele vislumbra delinear um paralelo entre a propagação dos genes e a difusão da cultura humana. Devemos atentar, no entanto, para a espantosa velocidade com que a evolução cultural ocorre se comparada à genética. Só para ficarmos com um exemplo, se fosse possível regressarmos no tempo, não conseguiríamos entabular uma conversa fluente com Pedro Álvares Cabral justamente por conta da célere evolução linguística. É fácil constatar com que rapidez evolui a cultura quando divisamos as profundas transformações pelas quais passaram as Artes, as Religiões e as Ciências ao longo do tempo. Assim como defende uma evolução progressiva para os replicadores genéticos, Dawkins também o faz para a evolução memética. É nesse sentido que não basta dizermos que a Ciência muda, mas, sim, que ela se converte em algo melhor: a atual Biologia Evolutiva, devido ao acúmulo de conhecimentos, é superior à Biologia Evolutiva presente n’A Origem, fato esse corroborado, por exemplo, pelo desconhecimento de Darwin acerca da transmissão hereditária.
Em nossa opinião, o ponto mais formidável d’O Gene Egoísta é aquele que nos adverte para a impossibilidade de se compreender a evolução humana se debruçando unicamente sobre à seleção natural dos genes. Estaria o autor renegando o legado de seu maior herói intelectual? Nada poderia estar mais longe da verdade, haja vista que Dawkins é mais darwinista do que Darwin:
Sou um adepto entusiasmado do darwinismo, mas penso que se trata de uma teoria demasiado ampla para ficar confinada ao contexto limitado do gene. O gene entrará na minha teoria como uma analogia, e nada mais (DAWKINS, 2007a, pp. 328-9).
Após dez capítulos, nos quais aparecem as ideias de Fisher, Hamilton, Williams, Trivers e Maynard Smith, Dawkins finalmente dá a sua contribuição original ao se questionar por princípios biológicos universalmente válidos. Poderíamos reformular a sua interrogação do seguinte modo: depois de um incalculável investimento em pesquisa espacial e após o usufruto dos grandes livros de ficção científica, o que ocorreria se finalmente esbarrássemos com formas de vida alienígena? Poderíamos apostar que o DNA fosse a molécula por trás dos seus (até então) inimagináveis padrões corporais? Não, porque nada impede que a base bioquímica desses alienígenas seja dessemelhante da nossa; por exemplo, a vida nesse planeta poderia ser fundada no silício, em vez de o carbono. Outra saída estaria no atrelamento da atividade vital à presença de água, mas não é impossível, prima facie, que certos organismos prescindam dessa substância para viver. Não obstante as soluções desses questionamentos serem empíricas, Dawkins extrapola o seu pensamento biológico para além de nossas divisas planetárias e postula o seguinte princípio fundamental das Ciências da Vida:
Trata-se da lei segundo a qual toda a vida evolui pela sobrevivência diferencial das entidades replicadoras. O gene, a molécula de DNA, é por acaso a entidade replicadora mais comum no nosso planeta. Pode ser que existam outras. Se existirem, desde que algumas condições sejam satisfeitas, elas tenderão, quase invariavelmente, a tornar-se a base de um processo evolutivo (DAWKINS, 2007a, p. 329).
Em outras palavras, Dawkins propõe um “darwinismo universal” ao garantir que todas as formas de vida que existiram, existem e existirão no Universo têm por base a reprodução, a transmissão e a sobrevivência diferencial de seus replicadores[13]. Torna-se-á a “lei” de Dawkins corroborada pelas futuras descobertas da Astrobiologia? Talvez sim, mas não precisamos sair da Terra para verificar esse princípio, pois foi retórica a sua menção a possíveis replicadores não constituídos de ácido nucléico:
Penso que um novo tipo de replicador surgiu recentemente neste mesmo planeta. Está bem diante de nós. Está ainda na sua infância, flutuando ao sabor da corrente no seu caldo primordial, porém já está alcançando uma mudança evolutiva a uma velocidade de deixar o velho gene, ofegante, muito para trás (DAWKINS, 2007a, pp. 329-30).
O cenário agora não é a sopa primordial pré-biótica, mas o caldo cultural humano. Para nomear este replicador cultural, Dawkins recorreu à palavra grega mímesis (μίμησις) que, entre outras coisas, significa imitar; traçando um paralelo linguístico com o replicador genético, teríamos o termo mimeme, que foi abreviado para meme[14]. Por serem replicadores culturais, os memes abrangem os mais variados comportamentos, costumes e produções da civilização humana. Eles estão relacionados ao hábito de assoviar uma melodia, à celebração matrimonial e ao modo utilizado na construção de um instrumento. Quando o seu amigo cantarola aquela “música chiclete” e de repente você se vê fazendo o mesmo, estamos diante de um processo imitativo que envolve a transmissão do meme música de um cérebro para o outro. Após a apresentação do novo conceito, Dawkins menciona um comentário sobre os memes feito por Nicholas Humphrey:
Os memes devem ser considerados estruturas vivas, não apenas metafórica, como também tecnicamente. Quando planta um meme fértil na minha mente, você literalmente parasita o meu cérebro, transformando-o num veículo de propagação do meme, da mesma maneira que um vírus pode parasitar o mecanismo genético de uma célula hospedeira. E isso não é apenas modo de dizer – o meme para “a crença na vida depois da morte”, por exemplo, é de fato efetuado fisicamente, milhões de vezes seguidas, como uma estrutura nos sistemas nervosos de seres humanos individuais espalhados por todo o mundo (HUMPHREY citado por DAWKINS, 2007a, pp. 330-1. Ênfases nossas).
Já dissemos que a verdadeira contribuição teórica de Dawkins é a sua proposição do conceito de meme no 11º capítulo d’O Gene Egoísta. Reforçado isso, não deixa de ser interessante que a ponderação de Humphrey talvez seja a primeira formulação clara e concisa – na vasta literatura memética – a conter as seguintes análises interpretativas:
(1) Os memes são estruturas vivas;
(2) Os memes são parasitas cerebrais análogos a vírus;
(3) As crenças religiosas são memes;
(4) Os memes se efetuam fisicamente no sistema nervoso.
A ponderação de Humphrey é, evidentemente, posterior ao manuscrito do livro, mas o nosso intento é destacar que ela aparece antes que Dawkins exponha as suas próprias posições no texto. Previamente à citação do seu colega, Dawkins havia criticado as tentativas de explicar a Religião a partir de “vantagens biológicas” e tinha mencionado apenas os seguintes exemplos de memes: “melodias, ideias, slogans, as modas no vestuário, as maneiras de fazer potes ou de construir arcos” (2007a, p. 330). Quando menciona a propagação de uma ideia, Dawkins considera a difusão de um cérebro para outro, sem especificar, no entanto, se o que está sendo transmitido é uma estrutura viva que se realiza fisicamente nos cérebros. Considerando que no capítulo sobre os replicadores Dawkins desdenha do conceito de vida – “Deveríamos então considerar que as moléculas replicadoras originais estavam ‘vivas’? Que importa isso?” (2007a, p. 64) –, não esperaríamos que se interessasse, agora, em atribuir ou não vida aos replicadores culturais. Contudo, a questão da efetuação física dos memes se enquadra perfeitamente bem na sua visão fisicalista[15] do mundo. Por fim, ele se vale da Ciência para exemplificar pela primeira vez a propagação memética:
Se um cientista ouve ou lê sobre uma boa ideia, transmite-a a seus colegas e alunos. Ele a menciona nos seus artigos e nas suas palestras. Se a ideia pegar, pode-se dizer que ela propaga a si mesma, espalhando-se de cérebro para cérebro (DAWKINS, 2007a, p. 330).
O biólogo nairobiano apenas utiliza as suas próprias palavras para vincular as crenças religiosas aos memes após a avaliação de Humphrey:
Considere a ideia de Deus. Não sabemos como ela surgiu no pool de memes. Provavelmente, originou-se muitas vezes por “mutações” independentes. De todo modo, é uma ideia realmente muito antiga. Como se replica? Pela palavra falada e escrita, auxiliada pela boa música e pela grande arte. Por que ela tem um grau de sobrevivência tão elevado? […] Na verdade, a pergunta significa “O que há na ideia de um deus que lhe confere estabilidade e penetração no ambiente cultural?”. O valor de sobrevivência do meme [d]eus no pool de memes resulta de seu grande apelo psicológico. Ele fornece uma explicação superficialmente plausível para questões profundas e perturbadoras a respeito da existência. […] Deus existe, nem que seja somente na forma de um meme com elevado grau de sobrevivência, ou poder de contágio [ênfases nossas], no ambiente fornecido pela cultura humana (DAWKINS, 2007a, p. 331).
Há pouco, quando comentou sobre os memes científicos, Dawkins fez referência à transmissão de boas ideias; em contraste, há uma menção, à semelhança dos vírus, ao poder contagioso dos memes religiosos. Posteriormente, ele afirmará peremptoriamente que existem memes sem tal caráter venenoso. Os bons e úteis replicadores culturais, exemplificados pelas ideias científicas, não são viróticos:
As ideias científicas, como todos os memes, estão sujeitas a um tipo de seleção natural, e nisso elas poderiam se parecer, à primeira vista, com os vírus. Mas as forças seletivas que examinam a fundo as ideias científicas não são arbitrárias e caprichosas. São regras precisas, bem afiadas, e não estão a serviço de comportamentos egoístas e sem sentido (DAWKINS, 2005d, p. 256).
Na sequência, analisaremos o enunciado de que os memes são análogos a vírus (2) em conjunção com aquele de que as crenças religiosas são memes (3).
4 A Árvore da Ignorância e do Mal: A Religião como Vírus da Mente
O microbiologista Carl Richard Woese e seus colaboradores se embasaram nas relações filogenéticas entre os seres vivos para propor o Sistema dos Três Domínios. De acordo com esse sistema, podemos agrupar os organismos nos Domínios Bacteria (bactérias e cianobactérias), Archaea (arqueobactérias) e Eukarya (engloba todos os eucariontes, como os animais, vegetais, fungos, algas e protozoários). O que nos salta aos olhos logo de imediato é que os vírus (do latim, veneno) não se enquadram em nenhum desses Domínios[16]. Apesar das diferenças existentes entre a bactéria que causa o tétano, a levedura que produz a cerveja e o cajueiro, o compartilhamento de características fundamentais é suficiente para permitir classificá-los como vivos.
À primeira vista, não podemos dizer o mesmo dos vírus, pois eles ocupam a fronteira entre o inanimado e o vivo. Hartman (2000, p. 234) resume esse caráter controverso da seguinte forma: “De um lado, eles são capazes de autoduplicação e mutação e, de outro, podem ser cristalizados”. Diferentemente da bactéria, da levedura e do cajueiro, os vírus não possuem organização celular, não têm metabolismo próprio e, em determinadas condições, cristalizam-se; em compensação, são formados por biomoléculas complexas, possuem material genético e se reproduzem. Os vírus, acelulares, utilizam-se da maquinaria metabólica do hospedeiro para se reproduzirem, sendo por isso denominados de parasitas intracelulares obrigatórios.
Antes de chegarmos à Religião propriamente dita, devemos compreender a analogia mais geral traçada por Dawkins entre vírus e memes: assim como os vírus parasitam as células e delas dependem para a sua reprodução, os memes parasitam os cérebros e deles dependem para a sua transmissão. Esta transmissão memética é potencializada nos mais jovens, haja vista que o processo evolutivo se materializou em cérebros infantis extremamente eficazes em assimilarem a cultura circundante. É por esse motivo que as crianças em geral são tão sugestionáveis e acreditam facilmente no que dizem os adultos. Como essa predisposição evolutiva não veio acompanhada de um manual que permita separar o joio do trigo, a criança é constitutivamente vulnerável a todo tipo de crendice, inclusive as pseudocientíficas e as religiosas:
Com tantos bytes mentais a serem transferidos, tantos códons a serem duplicados, não admira que as mentes das crianças sejam inocentes, abertas a todo tipo de sugestão, vulneráveis à subversão, presa fácil para os moonies, os cientologistas e as freiras. Como pacientes imunodeficientes, as crianças mostram-se amplamente abertas a infecções mentais [grifos nossos] das quais os adultos se livrariam sem maiores esforços (DAWKINS, 2005d, pp. 229-30).
Aqui, Dawkins faz especificações que não estavam presentes em sua formulação original. N’O Gene Egoísta, ele já havia associado a Religião aos replicadores culturais ao afirmar que “Deus existe […] na forma de um meme”. Além do mais, a estabilidade e a eficiência com que o meme Deus é transmitido ao longo das gerações se deve ao seu “grande apelo psicológico”[17], e este apelo, por seu turno, confere-lhe um excessivo “poder de contágio”. Portanto, apesar de não ter utilizado textualmente a palavra vírus, consideramos que a analogia já estava implícita na noção de contágio. Também destacamos que nesse livro o surgimento e a evolução dos memes estavam genericamente associados ao cérebro e à cultura humana:
Sempre que surgirem condições para que um novo tipo de replicador possa produzir cópias de si mesmo, o novo replicador tenderá a tomar as rédeas da situação e a iniciar um novo tipo de evolução. Uma vez começada essa nova evolução, ela não terá, em nenhum sentido, de se submeter à antiga. Quando a evolução antiga, por seleção de genes, produziu os cérebros, ela forneceu o “caldo” em que se originaram os primeiros memes. No momento em que os memes auto-replicadores surgiram, a sua própria evolução, de um tipo muito mais veloz, teve início (DAWKINS, 2007a, p. 332).
Em Os Vírus da Mente[18], publicado originalmente em 1993, há uma importante distinção relacionada à faixa etária do indivíduo, já que os cérebros infantis são facilmente infectáveis quando contrastados aos dos adultos. Essa vulnerabilidade do órgão infantil é comparável ao que acontece a uma pessoa com síndrome da imunodeficiência: o cérebro infantil é vulnerável aos contágios culturais da mesma forma que um corpo imunocomprometido está desprotegido de doenças oportunistas. Igualmente, assim como os vírus, os cérebros – sobretudo os infantis – são acurados tanto em copiar a informação quanto em executar habilmente o conteúdo prescrito na mensagem copiada. Em relação à primeira característica, enfatizamos que ser eficaz na cópia não significa o mesmo que duplicação perfeita: os erros que cometemos ao cantar a letra de uma música são similares às mutações genéticas que ocorrem, por exemplo, na reprodução viral. Quanto à segunda qualidade, os cérebros seguem as instruções culturais de modo análogo ao cumprimento do programa genético pelos vírus. Isso explica o fato revelador que, em todo o mundo, a vasta maioria das crianças siga a religião de seus pais em vez de alguma outra das religiões disponíveis. As instruções para ajoelhar-se, curvar-se em direção a Meca, inclinar a cabeça ritmadamente diante do muro, estremecer como um louco, “falar línguas desconhecidas” […] são obedecidas, se não obrigatoriamente, ao menos com uma probabilidade estatística razoavelmente alta (DAWKINS, 2005d, p. 242).
Como a vulnerabilidade às ideias perniciosas é constitutiva das crianças, elas deveriam ser protegidas da doutrinação religiosa que recebem desde a mais tenra idade. Nesse sentido, rotular uma criança como católica ou protestante é tão absurdo quanto afirmar que ela é conservadora ou liberal. Na mais polêmica de suas obras, Dawkins tenta nos conscientizar que a prática de colar rótulos religiosos em crianças, apesar de comum, é execrável:
Uma criança não é uma criança cristã, não é uma criança mulçumana, mas uma criança de pais cristãos ou uma criança de pais mulçumanos. Essa nomenclatura, aliás, seria um excelente instrumento de conscientização para as próprias crianças. Uma criança que ouve que é “filha de pais mulçumanos” perceberá imediatamente que a religião é algo que cabe a ela escolher – ou rejeitar – quando tiver idade suficiente para tal (DAWKINS, 2007b, p. 432).
Deixando de lado a campanha conscientizadora, poderíamos perguntar a Dawkins sobre o tamanho específico de um meme. Em outras palavras, queremos saber se é a posse de um único ou de vários memes que tornam católico o Papa Francisco. Mais uma vez, o biólogo recorre aos antigos primos para iluminar o que se passa com os jovens replicadores: do mesmo modo que determinados genes coadaptados se unem para desempenhar uma função[19] e que outros formam grupos genéticos evolutivamente estáveis[20] nos conjuntos gênicos, os memes também podem se agrupar em complexos, os memeplexos:
Talvez pudéssemos considerar uma igreja organizada, com sua arquitetura, seus rituais, leis, música, arte e tradição escrita, um conjunto estável, coadaptado, de memes que se promoveriam mutuamente (DAWKINS, 2007a, p. 338).
Por analogia com os complexos coadaptados de genes, os memes, selecionados uns em relação aos outros, “cooperam” em memeplexos, apoiando-se mutuamente – apoiando-se no interior do mesmo memeplexo, mas hostis a memeplexos rivais. As religiões talvez sejam os exemplos mais convincentes de memeplexos, embora não sejam de modo algum os únicos (DAWKINS, 2005c, p. 225)
Há quem leia O Gene Egoísta de maneira enviesada e enxergue a defesa de uma determinação genética das esferas psicológica e cultural, determinação essa que resultaria em seres humanos necessariamente egoístas. Entretanto, Dawkins afirma que apesar de nascermos egoístas, distinguimo-nos das demais espécies pelo fato de, pela cultura, podermos remar contra a natureza egoística de nossas moléculas replicadoras. Esta chave de leitura se baseia em passagens que estão presentes no princípio e no desfecho do livro:
Pessoalmente, acredito que uma sociedade baseada apenas na lei do egoísmo impiedoso dos genes seria uma sociedade execrável. […] Tratemos então de ensinar a generosidade e o altruísmo, porque nascemos egoístas. Tratemos de compreender o que pretendem os nossos próprios genes egoístas, pois só assim teremos alguma chance de perturbar os seus desígnios, algo que nenhuma outra espécie jamais aspirou em fazer.
[…]
Os nossos genes podem nos instruir a sermos egoístas, mas não somos necessariamente forçados a obedecê-los a vida toda. Pode apenas ser mais difícil para nós aprender o altruísmo do que seria se estivéssemos geneticamente programados para sermos altruístas (DAWKINS, 2007a, p. 40).
[…]
Temos o poder de desafiar os genes egoístas que herdamos e, se necessário, os memes egoístas com que fomos doutrinados. Podemos até discutir maneiras de estimular e ensinar deliberadamente o altruísmo puro e desinteressado – algo que não existe na natureza e que nunca existiu antes na história do mundo. Somos construídos como máquinas de genes e educados como máquinas de memes, mas temos o poder de nos revoltar contra os nossos criadores. Somos os únicos na Terra com o poder de nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas[21] (DAWKINS, 2007a, p. 343).
Podemos retirar da própria Religião um exemplo de replicador cultural que se contrapõe à natureza egoística: o meme do celibato. Não precisamos de muita imaginação para concluir que seríamos extintos se todos fôssemos geneticamente compelidos ao comportamento celibatário. Assim sendo, se quisermos explanar o hábito do celibato, não devemos olhar para os genes, mas para a transmissão de ideias por líderes católicos:
O meme para o celibato é transmitido pelos padres a rapazes jovens que ainda não decidiram o que querem fazer com suas vidas. O meio da transmissão é a influência humana de vários tipos, a palavra escrita e a falada, o exemplo pessoal, e assim por diante (DAWKINS, 2007a, pp. 339-40).
A seguir, contraporemos Dawkins a Gould no que se refere ao modo que eles compreendem o relacionamento entre a Religião e a Ciência.
5 Os Caminhos, a Dúvida e a Vida: A Religião é Incompatível com a Ciência?
Para Dawkins, a Religião e a Ciência são como água e óleo: se as compreendermos, concluiremos que não se misturam. Além de serem imiscíveis, elas não podem ser simultaneamente verdadeiras, já que uma e outra fazem afirmações mutuamente excludentes sobre o Universo:
[Hipótese da Religião]: existe uma inteligência sobre-humana e sobrenatural que projetou e criou deliberadamente o universo e tudo que há nele, incluindo nós.
[…]
[Hipótese Evolutiva de Dawkins]: qualquer inteligência criativa, de complexidade suficiente para projetar qualquer coisa, só existe como produto final de um processo extenso de evolução gradativa (DAWKINS, 2007b, p. 56).
A ponderação lógica sobre o assunto, baseada no exame dos indícios, levar-nos-á à conclusão quase certa de que Deus não existe. Somos forçados, a partir de uma análise estatística, a descartar a Religião dogmática em favor da Ciência racional. Dawkins afirma ainda que a Religião sobrevive a despeito das provas que a refutam, enquanto a corroboração da Ciência se respalda em evidências:
Os fundamentalistas sabem que estão certos porque leram a verdade num livro sagrado e sabem, desde o começo, que nada os afastará de sua crença. A verdade do livro sagrado é um axioma, não o produto final de um processo de raciocínio. O livro é a verdade e, se as provas parecem contradizê-lo, são as provas que devem ser rejeitadas, não o livro. Pelo contrário, as coisas em que eu, como cientista, acredito (a evolução, por exemplo), acredito não porque as li num livro sagrado, mas porque estudei as provas. É uma coisa bem diferente (DAWKINS, 2007b, p. 362).
A visão de que haja um conflito necessário entre a Religião e a Ciência não é vista com bons olhos por Stephen Jay Gould. No livro Pilares do Tempo, ele se refere ao desacordo entre as atividades religiosa e científica como “um debate que só existe na mente e nas práticas sociais das pessoas, e não na lógica ou na utilidade correta desses dois assuntos inteiramente diferentes e igualmente vitais” (GOULD, 2002, p. 11). Contudo, ele rapidamente nos adverte que reconciliar a Religião e a Ciência não significa unificá-las. Sem se pretender original, ele defende que a legitimidade da Religião está na esfera moral e a da Ciência, no domínio factual. Destarte, a convivência harmônica é garantida desde que se respeitem essas fronteiras. Em outras palavras, o que Gould denomina de “princípio central de não interferência respeitosa” é uma exigência que deve ser cumprida em via dupla, tanto por religiosos quanto por cientistas. Eis como ele pinta os magistérios não interferentes (MNI) da Religião e da Ciência:
Resumindo, […] a esfera ou magistério da ciência engloba o mundo empírico: de que é feito o universo (fato) e por que ele funciona de determinada maneira (teoria). O magistério da religião engloba questões de significado definitivo e valor moral. Esses dois magistérios não interferem um com o outro, tampouco englobam todas as especulações (considerem, por exemplo, o magistério da arte e o significado da beleza) (GOULD, 2002, p. 13).
O conflito ocorre, precisamente, quando uma esfera transborda de suas verdadeiras balizas e pretende tratar de questões que não lhe dizem respeito. Citemos um exemplo de cada lado. São famosos os casos do movimento criacionista no país de Gould, os Estados Unidos. Um ramo conhecido como Criacionismo de Terra Jovem defende, baseado numa leitura literal da Bíblia, que o nosso planeta tem pouco milhares de anos. Como, de acordo com esses criacionistas, há evidências científicas que corroboram tal interpretação, ela deve ser ensinada nos currículos escolares ao lado da Biologia Evolutiva. O desrespeito da outra extremidade adviria dos cientistas ateus que se utilizam de conhecimentos fáticos com o intuito de abordar temas não empíricos. Por questões de espaço, contentemo-nos com este segundo tipo de desacato.
Em nosso entender, um problema a ser enfrentado pela noção de conflito necessário entre a Religião e a Ciência está no grande número de cientistas que não são ateus, o que inclui, obviamente, os agnósticos. Mesmo que fiquemos restritos à Biologia, podemos montar uma equipe formada por Alfred Russel Wallace, Thomas Huxley, Theodosius Dobzhansky, o próprio Gould e Darwin! Não deve ser fácil, mas Dawkins terá que se resignar com o fato de que seu tataravô intelectual não era ateu, muito menos um ateu militante. Gould capitaliza isso quando reitera que Darwin não usou a evolução para promover o ateísmo ou para afirmar que nenhum conceito de Deus jamais poderia ser equacionado com a estrutura da natureza. O que ele argumentou foi que a factualidade da natureza, se interpretada segundo o magistério da ciência, não é capaz de resolver, nem mesmo de especificar, a existência ou o caráter de Deus, o significado definitivo da vida, as bases corretas da moralidade ou qualquer outra questão pertencente ao magistério distinto da religião (GOULD, 2002, p. 151).
Pilares do Tempo precede em sete anos o lançamento de Deus, um Delírio, obra na qual Dawkins sistematiza a sua posição neoateísta. No livro de Gould, enxergamos críticas veladas que são direcionadas ao colega do outro lado do Atlântico, mas Dawkins não é nominado em nenhuma de suas páginas. Em contrapartida, Gould já havia falecido há quase cinco anos quando foi alvo destas críticas em Deus, um Delírio:
Gould executou a arte de recuar a distâncias incríveis em um de seus livros menos admirados, Pilares do tempo. Ali ele cunhou a sigla MNI para o termo “magistérios não interferentes”: […]
[…]
Parece ótimo – até que você pense um instante sobre o assunto. Quais são essas questões definitivas em cuja presença a religião é convidada de honra e a ciência deve respeitosamente se retirar? (DAWKINS, 2007b, p. 86).
Para Dawkins, a proposta de magistérios não interferentes de Gould se baseia na antiga distinção de que a Religião trata de perguntas do tipo “por que” e a Ciência aborda as perguntas do tipo “como”. Ele reage com indignação, afirmando que essa discriminação é bastante problemática:
O que diabos é uma pergunta sobre por quê? Nem toda pergunta que começa com um “por que” é uma pergunta legítima. Por que os unicórnios são ocos? Algumas perguntas simplesmente não merecem resposta. Qual é a cor da abstração? Qual é o cheiro da esperança? (DAWKINS, 2007b, p. 87).
Dessa maneira, a nossa capacidade de elaborar perguntas gramaticalmente impecáveis não implica que elas sejam dignas do nosso precioso tempo, pois muitas dessas questões são desprovidas de sentido.
6 Entendei-vos Uns aos Outros
Ao longo desse texto expusemos três tipos de posicionamento do zoólogo queniano em relação ao naturalista britânico, a saber:
(i) Dawkins com Darwin: a seleção natural tem papel decisivo como sendo o principal – mas não o único – mecanismo evolutivo na teoria de ambos. Além disso, tanto o naturalista quanto o biólogo são partidários da evolução gradualista;
(ii) Dawkins contra Darwin: a seleção atua sobre o gene, e não sobre o organismo – concepção genecêntrica ou teoria do gene egoísta;
(iii) Dawkins além de Darwin: a seleção natural se aplica a qualquer tipo de replicador, seja ele o material genético de possíveis alienígenas, um meme ou um vírus de computador – darwinismo universal.
O conceito de meme está umbilicalmente ligado à proposta de darwinismo universal e vai de encontro à leitura de que Dawkins seja um determinista genético em relação ao comportamento humano – pelo menos no sentido forte de determinismo[22]. Prova disso é que os memes nos permitem desobedecer, se assim o quisermos, as instruções egoísticas dos genes. Na proposta original de 1976, Dawkins exemplificou a transmissão tanto de memes científicos quanto de religiosos: ele mencionou o poder de contágio quando falou do meme Deus, mas não fez o mesmo com a propagação das ideias científicas. Anos depois, ele distinguirá qualitativamente os memes entre bons e perniciosos; as ideias científicas e as religiosas se enquadram, respectivamente, no primeiro e no segundo tipo. Também está presente n’O Gene Egoísta a noção de memeplexo, que é apropriada para explicar instituições complexas como a Igreja Católica.
Outra ideia que não estava no seu primeiro livro é a maior vulnerabilidade das crianças às infecções mentais. Uma das consequências dessa fragilidade é que os cérebros infantis absorvem como uma esponja a Religião de seus pais. A rapidez dessa assimilação impede que a criança pondere racionalmente sobre o conteúdo impregnado. Por conta disso, Dawkins considera abusiva a doutrinação religiosa e promove uma campanha para que nos refiramos às crianças como filhas de pais religiosos, mas não como religiosas. Na perspectiva de Dawkins, há um confronto necessário entre a Religião e a Ciência, pois os cientistas recusam a explicação sobrenatural invocada pelos religiosos. Além disso, as evidências encontradas no Universo nos permitem concluir com quase certeza que Deus não existe. Por fim, Dawkins assevera que, mesmo que existam questões cientificamente insolúveis, isso de modo algum nos autoriza a tentar resolvê-las teologicamente.
O posicionamento de Gould é de que inexistiria tal conflito entre a Religião e a Ciência se fossem respeitados os limites temáticos e metodológicos de cada magistério. Segundo ele, o próprio Darwin respeitou essas fronteiras e, portanto, deveria ser tomado como um exemplo a se seguir. É um fato que a Ciência é utilizada para construirmos teorias elegantes que descrevem minuciosamente as leis da natureza. Não obstante isso, mesmo que chegássemos ao estágio de total compreensão dos objetos materiais do Universo, conservar-se-iam intocadas as questões valorativas e de sentido último.
Dawkins e Gould foram os que melhor divulgaram a Biologia Evolutiva na segunda metade do século XX. O sucesso de venda de seus livros se deve à afortunada junção de uma escrita refinada com o rigor conceitual no tratamento dos temas. Devemos utilizá-los na instrução daqueles que não enxergam o aspecto dinâmico da atividade científica e que são incapazes de compreender que divergências entre cientistas de uma mesma área são corriqueiras. Por conta da semelhança de formação acadêmica e por serem contemporâneos, Dawkins e Gould defendem abordagens que concordam no atacado, mas se chocam no varejo. Esses desentendimentos são refletidos no modo como eles descortinam a Ciência e, consequentemente, no tipo de relacionamento que ela estabelece com a Religião.
Sobre esse tema, uma das mais prestigiosas agremiações científicas do mundo se manifestou do seguinte modo:
A ciência não pode nem provar nem refutar a religião. Os avanços científicos colocaram algumas crenças religiosas em dúvida, como as ideias de que a Terra foi criada muito recentemente, de que o Sol gira em torno da Terra e de que a doença mental se deve à possessão por espíritos ou demônios. Porém, muitas crenças religiosas envolvem entidades ou ideias que atualmente não estão dentro do domínio da ciência. Então, seria falso presumir que todas as crenças religiosas podem ser contestadas por descobertas científicas (Academia Nacional de Ciências, Instituto de Medicina, 2001, p. 54).
Como podemos notar, se a contenda fosse arbitrada pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, prevaleceria, em geral, a visão do entendimento mútuo entre a Religião e a Ciência. Enfim, sabemos que este assunto é bastante complexo, exige uma análise mais detalhada e, com certeza, retornaremos a ele futuramente.
Referências
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[1] Para Dawkins, a maior veracidade, completude e superioridade decorreria do caráter cumulativo do conhecimento científico. Todavia, seria possível afirmar que esse armazenamento de informação não nos torna mais sábios ou mais grandiosos do que Darwin, visto que “toda a biologia moderna é uma série de notas de rodapé a Darwin. […] Todo biólogo segue os passos de Darwin; e, com toda humildade, nenhum de nós poderia fazer melhor do que seguir o exemplo dele” (DAWKINS, 2015, p. 295).
[2] Seymour-Smith (2002, pp. 21-2) é bastante contundente quando rotula Dawkins como “o estúpido dos estúpidos”, acusa-o de “total analfabetismo” e classifica O Gene Egoísta de “lixo incrivelmente confuso”.
[3] Defesas do pensamento de Darwin são feitas n’O Relojoeiro Cego [1986], n’O Rio que Saía do Éden [1995] e n’A Escalada do Monte Improvável [1996].
[4] Mayr (2008, p. 94) faz a seguinte advertência em relação às “leis” biológicas: “Regularidades são abundantes no mundo vivo também, mas, em sua maioria, não são universais, nem sem exceção; elas são probabilísticas e muito restritas no espaço e no tempo. […] É claro que, no nível molecular, muitas das leis da química e da física são igualmente válidas para os sistemas biológicos, e essas leis permeiam a biologia. Mas poucas regularidades observadas nos sistemas complexos, se alguma, satisfazem a rigorosa definição de lei adotada por físicos e filósofos”.
[5] Em Lima Filho (2015), apresentamos duas concepções distintas para explicar o desenho e a complexidade biológica: a primeira delas invoca um Deus pessoal onipotente, onisciente, onipresente, eterno e sumamente bom (Paley), enquanto a outra explicação prescinde de um Planejador sobrenatural e se baseia tão somente em um processo cego sem qualquer tipo de antevisão (Darwin).
[6] Tomamos aqui de empréstimo a expressão divertida de Sterelny (2007, p. 17). O cenário especulativo narrado n’O Gene Egoísta poderia ser permutado por outra hipótese sobre a origem da vida sem que o argumento central do livro fosse afetado. Dawkins (2007a, p. 57) está consciente de que a hipótese que utiliza é secundária quando declara o seguinte: “A descrição da origem da vida que apresentarei é necessariamente especulativa; por definição, não havia ninguém lá para observar o que aconteceu. Existem algumas teorias rivais, mas todas apresentam certos traços em comum”. O cenário de evolução química esboçado por Dawkins se baseia na hipótese da sopa ou caldo primordial, proposta há quase um século pelo bioquímico soviético Aleksandr Oparin e pelo biólogo britânico John Burdon Sanderson Haldane. No livro A Origem da Vida, publicado originalmente em 1924, Oparin (p. 6) afirma que, diferentemente do idealismo religioso, o materialismo científico nos mostra “que a vida, como todo o mundo, é de natureza material e que não há necessidade de apelar para nenhum princípio espiritual ou sobrenatural para explicá-la”. Contudo, um desafio a ser encarado pelos defensores da hipótese de evolução química é a versão molecular do paradoxo do ovo e da galinha: já que a duplicação do DNA exige a participação de proteínas e a síntese destas moléculas dependem da informação contida no DNA, quem teria surgido primeiro? Dawkins é cauteloso em não especificar a base química dos primeiros replicadores: o DNA só vem à cena no segundo ato evolutivo e há algum tempo desempenha o papel de replicador hegemônico no palco da vida. Uma saída aventada para o paradoxo DNA-proteína reside na descoberta de um tipo de RNA com atividade catalítica, a ribozima. Como essa molécula concentra em si as funções genético-informacional e catalítica, é possível que tenha sido o primeiro material genético dos seres vivos da Terra, hipótese essa que recebeu a alcunha de “mundo de RNA” (VIEYRA & SOUZA-BARROS, 2000).
[7] Os termos Genética e gene foram cunhados no início do século XX pelo inglês William Bateson (1906) e pelo dinamarquês Wilhelm Johannsen (1909), respectivamente. Conforme revela Keller (2002), não obstante o formidável desenvolvimento pelo qual passou a Genética, os biólogos ainda são incapazes de fornecer uma definição unânime e precisa de gene.
[8] Aqui, devemos contrapor a potencial imortalidade dos genes à efemeridade temporal de seus veículos corporais (ou máquinas de sobrevivência): “Os organismos são entidades com vida que, nada mais nada menos, fazem coisas – mexem-se, comportam-se, buscam, caçam, nadam, correm, voam, dão de comer aos mais novos. E o melhor jeito de explicar qualquer coisa que um organismo faz é imaginar que ele foi programado, pelos genes que vão a bordo dele, para preservá-los e passá-los adiante antes que ele próprio morra” (DAWKINS, 2015, p. 269).
[9] Para Darwin, que sequer sabia o que é um gene, a seleção natural opera sobre o organismo. A esse respeito, Santilli (2011, p. 195) afirma o seguinte: “Na etapa inicial dessa controvérsia [relacionada às unidades de seleção], grande parte da argumentação permaneceu fiel à tradição – inaugurada por Darwin e que se manteve como visão dominante da Nova Síntese evolutiva – que considera o indivíduo, o organismo, como foco da seleção e da adaptação”. A discussão sobre a unidade de seleção é central n’O Gene Egoísta, e, nesse quesito, Dawkins escreve páginas e mais páginas para demonstrar o erro de Darwin: “Muito do que Darwin afirmou pode ser considerado, em seus detalhes, incorreto. Se Darwin lesse este livro, dificilmente reconheceria nele a sua teoria original, embora eu goste de pensar que o modo como a apresento o agradaria” (DAWKINS, 2007a, p. 335).
[10] Em um exercício de heresia genômica, um cristão curioso poderia matutar o seguinte: as células somáticas de Jesus Cristo continham um ou dois conjuntos cromossômicos? O biólogo ateu Dawkins desconsidera tanto o milagre sobrenatural quanto uma possível saída “naturalista” via partenogênese humana. Para ele, a explicação do porquê mais de um bilhão de pessoas acreditarem que Jesus não teve um pai biológico também se encontra na evolução memética, mais precisamente, numa mutação linguística: “Tendemos a considerar ruins as cópias imprecisas e, no caso dos documentos humanos, é difícil pensar em exemplos nos quais os erros possam ser vistos como benefícios. Quanto aos eruditos da Septuaginta, o mínimo que se pode dizer é que eles deram início a algo de profunda importância quando traduziram, incorretamente, a expressão ‘jovem mulher’, em hebraico, pela palavra ‘virgem’ em grego, originando a profecia ‘Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho…” (DAWKINS, 2007a, p. 61).
[11] Optamos por falar das abelhas, mas poderíamos ter utilizado outras espécies sociais para sustentar o raciocínio supramencionado: “as operárias ‘arrendam’ as reprodutoras, manipulando-as para torná-las mais produtivas na propagação de réplicas dos genes das operárias. Decerto que as máquinas de sobrevivência produzidas pela rainha não são descendentes das operárias, mas são, de qualquer forma, parentes próximos. Foi Hamilton quem percebeu, brilhantemente, que, pelo menos nas formigas, abelhas e vespas, as operárias podem ser, na realidade, parentes mais próximas das suas irmãs do que a própria rainha!” (DAWKINS, 2007a, p. 302).
[12] Outrossim, a teoria intenta explanar o porquê do comportamento camicase exibido pelas operárias, que sacrificam a própria vida em detrimento da colmeia: “Todos os seus esforços se dirigem à preservação dos seus genes por intermédio da dedicação a outros familiares, e não a uma prole própria. A morte de uma abelha-operária estéril significa tanto para os seus genes como a queda de uma folha no outono para os genes de uma árvore” (DAWKINS, 2007a, p. 300).
[13] Em outra ocasião, ele afirma o seguinte: “a forma geral da resposta de Darwin não é apenas incidentalmente verdadeira, ou verdadeira apenas em relação ao nosso tipo de vida, mas que ela é quase certamente verdadeira em relação a toda forma de vida, em toda parte do universo” (DAWKINS, 2005b, p. 145. Ênfase nossa).
[14] Em uma nota ao texto A Barcaça Chinesa e o Telefone sem Fio, Dawkins relata que posteriormente tomou conhecimento do termo mneme, que precedia em mais de um século a palavra meme: “Quando cunhei o termo ‘meme’, em 1976, eu não tinha conhecimento de que o biólogo alemão Richard Semon havia escrito um livro chamado Die Mneme […], no qual ele adotava o ‘mneme’ cunhado em 1870 pelo fisiologista austríaco Ewald Hering. Eu soube disso ao ler uma resenha de O gene egoísta escrita por Peter Medawar, que descreveu o ‘mneme’ como ‘uma palavra de retidão etimológica consciente’” (DAWKINS, 2005c, p. 443).
[15] No que se refere aos memes, Dawkins parece assumir uma posição fisicalista não redutiva próxima ao funcionalismo de computador da Filosofia da Mente. Em Desvendando o Arco-Íris, ele se vale de Daniel Dennett e de Susan Blackmore para traçar um paralelo entre a coevolução computacional software/hardware e a coevolução biológica gene/meme: assim como um programa computacional é executável em diversas máquinas, um meme é multiplamente realizável em vários cérebros, os quais, no fim das contas, são constructos genéticos. Mais do que isso, no transcurso informacional que vai do cérebro do emissor ao cérebro do receptor, é possível que os memes se propaguem em meios não neurológicos. Por exemplo, a melodia que saiu da cabeça de Raimundo Soldado foi para uma folha de papel, daí para a execução do conjunto musical, deste para um CD, que, decodificado nas ondas do rádio, atinge meus ouvidos ávidos por Abraçando Você. A tese da múltipla realizabilidade também está presente quando ele nega que haja uma relação necessária entre a consciência e o sistema nervoso: “Os sistemas nervosos podem ser exatamente o modo como ela [a consciência] trabalha em nosso planeta. Não estou dizendo que em Alfa Centauro não existam outros tipos de consciência que tivessem vindo de diferentes espécies de mecanismo” (DAWKINS, 2005f, p. 72).
[16] Uma reviravolta científica se deu com a descoberta do primeiro vírus gigante em 2003, na França. Este vírus gigante possui genes relacionados à codificação de aminoácidos, os blocos de construção das proteínas. Recentemente, foram descobertos dois vírus gigantes no Brasil, os Tupanvirus (ABRAHÃO, 2018a). Em uma entrevista concedida a Fábio de Castro, Jônatas Abrahão (2018b) – líder do grupo que descobriu os Tupanvirus – afirmou que “[a]s características básicas que permitem distinguir os vírus dos organismos celulares está sendo revista com o Tupanvirus. Alguns cientistas defendem que os vírus gigantes representam um quarto [D]omínio da vida. Há um debate intenso sobre isso e o Tupanvirus com certeza vai colocar mais combustível nessa discussão”.
[17] Críticos d’O Gene Egoísta objetaram quanto a uma possível circularidade do argumento utilizado na explicação do apelo psicológico: “Alguns colegas sugeriram que esta explicação do meme Deus toma como pressuposto aquilo que deveria provar. Em última análise, eles querem sempre voltar à ‘vantagem biológica’. Não basta dizer que a ideia de Deus tem ‘grande apelo psicológico’”; eles querem saber por que ela tem grande apelo psicológico. Apelo psicológico significa apelo para os cérebros, e os cérebros são moldados pela seleção natural de genes no pool gênico. Querem encontrar uma razão pela qual ter um cérebro assim aumenta a sobrevivência dos genes” (DAWKINS, 2007a, pp. 331-2). No texto Os Vírus da Mente, Dawkins fornece, como expusemos acima, uma explicação evolutiva para a propensão dos cérebros infantes ao contágio, o que condiz com a sua moldura genérica do darwinismo universal.
[18] Dawkins traça analogias tanto com os vírus biológicos quanto com os vírus de computador. Não exploraremos no presente trabalho a metáfora computacional.
[19] Um exemplo explorado no livro são os genes relacionados ao mimetismo das borboletas: “mediante a ‘edição’ inconsciente e automática produzida pelas inversões e por outros rearranjos acidentais do material genético, um amplo conjunto de genes antes separados constitui-se num grupo fortemente ligado entre si, num cromossomo” (DAWKINS, 2007a, p. 84).
[20] A despeito dos muitos subtipos envolvidos, podemos conceber abstratamente um herbívoro arquetípico. Dentro desse plano corporal genérico, alguns atributos são vantajosos por potencializarem as chances de o indivíduo sobreviver e se reproduzir. Por maximizarem cópias de si mesmos quando associados a outros genes que também codificam características favoráveis, eclodiram conjuntos evolutivamente estáveis desses replicadores: “Os genes são selecionados não por serem ‘bons’ isoladamente, e sim por funcionarem bem em relação ao pano de fundo dos outros genes no pool gênico. Um gene bom deve ser compatível com e complementar os outros genes com que tem de compartilhar uma longa sucessão de corpos. Um gene para dentes capazes de triturar plantas é um gene bom no pool gênico de uma espécie herbívora, no entanto é um gene ruim no pool gênico de uma espécie carnívora” (DAWKINS, 2007a, pp. 166-7). Obviamente, o que vale para os dentes se estende aos órgãos dos sentidos, aos órgãos digestórios, às garras etc.
[21] Esta é, de fato, a última passagem do livro original de 1976. No entanto, Dawkins publicou uma segunda edição em 1989, à qual acrescentou um novo prefácio, notas, bibliografia atualizada e os seguintes capítulos: Os Bons Rapazes Terminam Primeiro (capítulo 12) e O Longo Alcance do Gene (capítulo 13). As duas passagens citadas anteriormente se encontram no início do primeiro capítulo, Por que as Pessoas Existem?.
[22] Contudo, pensamos que há um flerte com o determinismo genético de nossa conduta nessa passagem de seu primeiro livro autobiográfico: “E se a especulação jocosa de minha mãe fosse mesmo verdade, se a Clínica Eskotene tivesse mesmo me trocado pelo filho dos Cuthbert e eu tivesse sido criado como a criança errada num lar missionário? Será que hoje eu seria missionário ordenado? Acho que os geneticistas sabem o suficiente para dizer que não, provavelmente não” (DAWKINS, 2015, p. 294. Destaques nossos).