Transtorno do Espectro Autista: diagnósticos diferenciais, por Gustavo Wolff Cardoso
O Transtorno do Espectro autista (TEA) é uma desordem de base biológica do desenvolvimento neurológico caracterizada por déficits persistentes na comunicação e interação social associados a restrições e repetições de padrões de comportamento, interesse e atividades [1].

A prevalência do TEA aumentou ao longo dos anos, particularmente desde o final dos anos 1920. Revisões sistemáticas de estudos epidemiológicos sugerem que essa mudança deveu-se à mudanças na definição de critérios diagnósticos e maior disseminação do TEA como transtorno passível de diagnóstico [2]. Outros fatores que podem explicar esse aumento na prevalência são: detecção precoce, disponibilidade de serviços de desenvolvimento especializados, substituição de diagnóstico (i.e.: aumento na prevalência do TEA acompanhando pela diminuição da prevalência transtornos de aprendizado, transtornos de linguagem, déficits intelectuais etc), aumento real na prevalência [3].
Em uma revisão sistemática de 54 estudos incluindo mais de 13 milhões pacientes, a razão geral masculino/feminino foi de 4,2 [4]. A prevalência estimada para o TEA em irmãos de criança com TEA que não têm condições médicas associadas a outras síndromes varia de 3-10 por cento em estudos com limitações metodológicas (e.g.: amostras pequenas, vieses de averiguação); entretanto estudos publicado desde 2010 (com mesmas limitações metodológicas e variabilidade) sugerem que essa prevalência chegue a 20 por cento [1].
Em um extenso estudo intitulado “The familial risk of autism” publicado no JAMA (Journal of the American Medical Association) em 2014 — estudo coorte incluindo 2 milhões de crianças nascidas na Suécia entre 1982 e 2006 — mostrou que o risco cumulativo para TEA era: 3 por cento entre primos; 7 por cento entre meio-irmãos paternos; 9 por cento entre meio-irmãos maternos; 13 por cento entre gêmeos dizigóticos; 59 por cento entre gêmeos monozigóticos [5].
A patogênese do TEA não é completamente compreendida. O consenso geral é baseado pela “teoria epigenética”, na qual um gene anormal é “ativado” ainda no desenvolvimento fetal e afeta a expressão de outros genes sem mudar a sequência de bases nitrogenadas do DNA [1]. Neuroimagem, eletrofisiologia e estudos de necropsia em pacientes com TEA sugerem anormalidades cerebrais principalmente relacionadas à conectividade atípica neuronial [6]. Comparados com indivíduos sem TEA, indivíduos com TEA têm diferentes volumes totais e regionais de substância branca e cinzenta; diferentes anatomias de giros e sulcos; diferentes concentrações de neurotransmissores; diferentes conformações de redes neurais, estrutura cortical, organização do córtex e lateralização cerebral [7-13].

Os critérios diagnósticos utilizados para o TEA variam geograficamente. Nos Estados Unidos da América (EUA), o DSM-5 (Statistical Manual of Mental Disorders) de 2013 é predominantemente utilizado. A Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) em sua 10ª edição (CID-10) é amplamente utilizada ao redor do mundo. Em 2018, a 11ª edição (CID-11) foi lançada e começa a ser preparada para utilização a partir de 2022 [1].
Um número de condições do neurodesenvolvimento e síndrome genéticas estão associadas ao TEA. Cerca de 45 por cento dos pacientes com TEA são portadores de déficit intelectual, por exemplo. Cerca de 50 por cento têm Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e cerca de 30 por cento têm epilepsia; sendo este risco maior em pacientes com déficit intelectual mais severo [1],[14].
Os diagnósticos diferenciais do TEA estão relacionadas à condições que prejudicam a comunicação social ou interação social e/ou, estão associados a movimentos estereotipados. Em alguns casos, essas condições são as causas dos sintomas “TEA-like” e a criança não tem TEA; em outros casos, as condições coexistem com o TEA (nesses casos, tais condições coexistentes não explicam os sintomas) [15],[16].
Uma avaliação abrangente multidisciplinar sempre é necessária, e um de seus objetivos é determinar: se a criança tem TEA; se tem outra condição; se tem TEA associada a outra condição [17].
Uma história de comunicação e socialização atípica com frequência distingue TEA de outras condições; entretanto, frequentemente, exames complementares são necessários. Pode ser difícil distinguir algumas dessas condições do TEA em crianças muito jovens — que necessitam ser acompanhadas ao longo do tempo para que o diagnóstico seja firmado; ou crianças mais velhas no caso de as informações a respeito do desenvolvimento inicial não estarem disponíveis [15].
Condições a serem consideradas nos diagnósticos diferenciais do TEA em crianças incluem:
Atraso global no desenvolvimento/deficiência intelectual — Pode ser difícil de se distinguir do TEA, particularmente em crianças mais jovens e naquelas com comprometimento cognitivo grave. Déficits cognitivos são difíceis de avaliar em crianças com idade baixa, crianças não verbais, e também deficiência severa pode estar associada com comportamentos repetitivos e misturado com atraso na linguagem [15]. Além disso, a deficiência intelectual é comum entre as crianças com TEA. No atraso global do desenvolvimento/deficiência intelectual isolado as habilidades de socialização e comunicação geralmente são compatíveis e apropriadas para o seu nível de desenvolvimento — caminham juntas; enquanto as habilidades de socialização e comunicação nas crianças com TEA são aberrantes para seu nível de desenvolvimento [15]. Aspectos clínicos que são mais característicos do TEA coexistindo atraso global do desenvolvimento incluem comprometimento no comportamento não-verbal e ausência de reciprocidade emocional e social;
Altas habilidades/superdotação — Pode mimetizar o TEA, particularmente se a criança com altas habilidades tiver transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), dificuldade de aprendizado, ou transtorno de ansiedade como comorbidade [15]. Em contraste com crianças com TEA, crianças com ansiedade social relacionadas a altas habilidades, tipicamente apreciam interação social, possuem habilidades de linguagem pragmática normais e demonstram intensos interesses funcionais e variados em relação ao meio;
Problemas de audição — Em contraste com crianças com TEA, crianças com problemas auditivos, usualmente têm interações sociais recíprocas normais, “faz-de-conta”, “eye-to-eye gaze” e expressões faciais indicativas de suas intenções de se comunicar [15] [17].
Síndrome de Rett — Desordem do neurodesenvolvimento que acomete quase que exclusivamente o sexo feminino. Os pacientes afetados inicialmente têm o desenvolvimento normal e posteriormente perdem a fala e movimentação do controle intencional da mão após a idade de 18 meses. Na maioria dos casos síndrome de Rett é resultante da mutação do gene MECP2. Aspectos clínicos incluem: desaceleração do crescimento cefálico — em contraste com a aceleração que ocorre no TEA —, e movimentos estereotipados da mão[15].
Transtorno de aprendizagem não-verbal — As crianças afetadas podem ter limitações nas áreas de desenvolvimento de linguagem básica, memorização por repetição, raciocínio social, similar às crianças com TEA sem deficiência intelectual ou deficiência de linguagem. Entretanto, crianças com transtorno de aprendizagem não verbal não possuem déficits persistentes na comunicação e interação social associados a restrições e repetições de padrões de comportamento, interesse e atividades; e também, crianças com transtorno de aprendizagem não-verbal possuem limitações nas habilidades sociais e de linguagem pragmáticas mais leves do que comparadas às crianças com TEA [15].
Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) — Podem ter limitações nas funções sociais, entretanto, tais limitações são geralmente consideravelmente menos significativas do que aquelas em crianças com TEA. Em contraste com crianças com TEA, crianças com TDAH possuem linguagem pragmática normal, comportamento social não verbal normal, e “faz-de-conta” [15],[18].
Transtorno obsessivo compulsivo (TOC) — O TOC possui características comportamentais que se sobrepõem ao TEA; até o ponto que se pode ser determinado indivíduos com TOC percebem seus sintomas como angustiantes e indivíduos com TEA não. Entretanto, indivíduos com TEA podem ter sintomas de TOC que julguem angustiantes. Ademais, crianças com TOC tipicamente possuem habilidades sociais, de linguagem e comunicação normais [15],[19].
Transtorno de ansiedade — Inclui: transtorno de ansiedade social, fobias específicas e mutismo seletivo. Possuem característica comportamentais que se sobrepõem ao TEA; até o ponto em que se pode ser determinado, indivíduos com transtorno de ansiedade percebem seus sintomas como angustiantes e crianças com TEA não. Entretanto, crianças com TEA frequentemente experienciam sintomas ansiosos que percebem como angustiantes. Além disso, crianças com transtorno de ansiedade tipicamente possuem habilidades sociais, de linguagem e comunicação normais [15].
Transtorno de apego (“attachment disorder) — Similar à crianças com TEA, crianças com transtorno de apego reativo ou privação severa em idade precoce podem ter anormalidades na interação social, comunicação e comportamento. Entretanto, geralmente, há uma história de negligência extrema ou problemas mentais por parte dos cuidadores. Ainda, as deficiências nas habilidades sociais nessas crianças tendem a melhorar em resposta a um ambiente apropriado de cuidado [15].
Síndrome de Landau-Kleffner (SLK, ou afasia epiléptica adquirida) — Caracterizada pela perda dos marcos (“milestones”) de linguagem adquiridos, inabilidade em compreender linguagem falada, convulsões ou eletroencefalograma epileptiforme. Crianças com SLK geralmente se desenvolvem normalmente até aproximadamente três a seis anos de idade — em contraste às crianças com TEA cujos sintomas geralmente estão presentes nos períodos iniciais do desenvolvimento, mas podem não se manifestar até que as demandas sociais excedam as capacidades. SLK geralmente tem início com a criança se comportando como se fosse surda (agnosia verbal auditiva). Dificuldades com linguagem expressiva também aparecem com o tempo mas as funções cognitivas permanecem normais [15].
Gustavo Wolff Cardoso : Médico pela Escola de Medicina da Universidade Estadual de Londrina.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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