Literatura, cinema e neurociências: “Macbeth”, “Laranja mecânica”, “Pulpfiction” e a Neurobiologia do comportamento violento- por Thales Gonçalves, Fernando Sumita, Ricardo Casagrande, João Paulo Hahmed e Elisabete Castelon Konkiewitz

Introdução

Banalização da violência: Pulp Fiction (no Brasil, Pulp Fiction – Tempo de Violência) é um filme estadunidense de 1994, escrito e dirigido por Quentin Tarantino, baseado num argumento escrito por ele e Roger Avary.

         

   Violência é  todo comportamento agressivo que causa lesão física, psicológica ou moral a um indivíduo, sem o consentimento deste. É um fenômeno amplo, multifatorial, associado a aspectos políticos, socioeconômicos, culturais, genéticos, médicos e psicossociais e que causa sérios problemas para a sociedade.        (1) (2)

Estatisticamente, os atos de violência se confirmam como um grave problema social.  Um estudo recente da Organização Mundial de Saúde forneceu uma estimativa de que, em 1 ano, no mundo, 1,43 milhões de pessoas morrem a partir de qualquer violência auto-infligida ou interpessoal (excluindo conflito armado), com um número ainda muito maior de vítimas não fatais. A maioria dos atos de violência são não planejados, representando agressividade impulsiva.(3)

Embora a violência possa ocorrer em muitos contextos, os atos individuais de agressão são relevantes  para a maioria dos casos. Em alguns indivíduos, atos repetitivos de agressão são baseados em uma susceptibilidade neurobiológica subjacente que estará em destaque nesta revisão.

 

 

TRANSTORNO DA PERSONALIDADE ANTI-SOCIAL –DSM-IV Características   Diagnósticas

 

Um caso de transtorno de personalidade anti-social: Laranja Mecânica (original: A Clockwork Orange) é um filme britânico de 1971, dirigido por Stanley Kubrick, adaptação do romance homônimo de 1962 do escritor inglês Anthony Burgess. Malcolm McDowell interpreta Alex, o protagonista.
  A característica essencial do Transtorno da Personalidade Anti-Social é um   padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos dos outros, que inicia   na infância ou começo da adolescência e continua na idade adulta. Este padrão   também é conhecido como psicopatia, sociopatia ou transtorno da personalidade   dissocial. Uma vez que o engodo e a manipulação são aspectos centrais do   Transtorno da Personalidade Anti-Social, pode ser de especial utilidade   integrar as informações adquiridas pela avaliação clínica sistemática com   informações coletadas a partir de fontes colaterais.
Para receber este diagnóstico, o indivíduo deve ter pelo menos 18 anos   (Critério B) e ter tido uma história de alguns sintomas de Transtorno da   Conduta antes dos 15 anos (Critério C).
O Transtorno da Conduta envolve um padrão de comportamento repetitivo e   persistente, no qual ocorre violação dos direitos básicos dos outros ou de   normas ou regras sociais importantes e adequadas à idade. Os comportamentos   específicos característicos do Transtorno da Conduta ajustam-se a uma dentre   quatro categorias: agressão a pessoas e animais, destruição de propriedade,   defraudação ou furto, ou séria violação de regras.
O padrão de comportamento anti-social persiste pela idade adulta. Os   indivíduos com Transtorno da Personalidade Anti-Social não se conformam às   normas pertinentes a um comportamento dentro de parâmetros legais (Critério   A1). Eles podem realizar repetidos atos que constituem motivo de detenção   (quer sejam presos ou não), tais como destruir propriedade alheia, importunar   os outros, roubar ou dedicar-se à contravenção.
As pessoas com este transtorno desrespeitam os desejos, direitos ou   sentimentos alheios. Freqüentemente enganam ou manipulam os outros, a fim de   obter vantagens pessoais ou prazer (por ex., para obter dinheiro, sexo ou   poder) (Critério A2). Podem mentir repetidamente, usar nomes falsos,   ludibriar ou fingir. Um padrão de impulsividade pode ser manifestado por um   fracasso em planejar o futuro (Critério A3).
As decisões são tomadas ao sabor do momento, de maneira impensada e sem   considerar as conseqüências para si mesmo ou para outros, o que pode levar a   mudanças súbitas de empregos, de residência ou de relacionamentos. Os   indivíduos com Transtorno da Personalidade Anti-Social tendem a ser   irritáveis ou agressivos e podem repetidamente entrar em lutas corporais ou   cometer atos de agressão física (inclusive espancamento do cônjuge ou dos   filhos) (Critério A4).
Os atos agressivos cometidos em defesa própria ou de outra pessoa não são   considerados evidências para este quesito. Esses indivíduos também exibem um   desrespeito imprudente pela segurança própria ou alheia (Critério A5), o que   pode ser evidenciado pelo seu comportamento ao dirigir (excesso de velocidade   recorrente, dirigir intoxicado, acidentes múltiplos). Eles podem engajar-se   em um comportamento sexual ou de uso de substâncias com alto risco de   conseqüências danosas. Eles podem negligenciar ou deixar de cuidar de um   filho, de modo a colocá-lo em perigo.
Os indivíduos com Transtorno da Personalidade Anti-Social também tendem a ser   consistente e extremamente irresponsáveis (Critério A6).
O comportamento laboral irresponsável pode ser indicado por períodos   significativos de desemprego apesar de oportunidades disponíveis, ou pelo   abandono de vários empregos sem um plano realista de conseguir outra   colocação. Pode também haver um padrão de faltas repetidas ao trabalho, não   explicadas por doença própria ou na família.
A irresponsabilidade financeira é indicada por atos tais como inadimplência e   deixar regularmente de prover o sustento dos filhos ou de outros dependentes.   Os indivíduos com Transtorno da Personalidade Anti-Social demonstram pouco   remorso pelas conseqüências de seus atos (Critério A7). Eles podem mostrar-se   indiferentes ou oferecer uma racionalização superficial para terem ferido,   maltratado ou roubado alguém (por ex., “a vida é injusta”,   “perdedores merecem perder” ou “isto iria acontecer de   qualquer modo”).Esses indivíduos podem culpar suas vítimas por serem tolas, impotentes ou por   terem o destino que merecem; podem minimizar as conseqüências danosas de suas   ações, ou simplesmente demonstrar completa indiferença. Estes indivíduos em   geral não procuram compensar ou emendar sua conduta. Eles podem acreditar que   todo mundo está aí para “ajudar o número um” e que não se deve   respeitar nada nem ninguém, para não ser dominado.
O comportamento anti-social não deve ocorrer exclusivamente durante o curso   de Esquizofrenia ou de um Episódio Maníaco (Critério D).

 

Critérios Diagnósticos para F60.2 – 301.7 Transtorno da Personalidade   Anti-Social
A. Um padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos dos outros, que   ocorre desde os 15 anos, como indicado por pelo menos três dos seguintes   critérios:
(1) fracasso em conformar-se às normas sociais com relação a comportamentos   legais, indicado pela execução repetida de atos que constituem motivo de   detenção
(2) propensão para enganar, indicada por mentir repetidamente, usar nomes   falsos ou ludibriar os outros para obter vantagens pessoais ou prazer
(3) impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro
(4) irritabilidade e agressividade, indicadas por repetidas lutas corporais   ou agressões físicas
(5) desrespeito irresponsável pela segurança própria ou alheia
(6) irresponsabilidade consistente, indicada por um repetido fracasso em   manter um comportamento laboral consistente ou honrar obrigações financeiras
(7) ausência de remorso, indicada por indiferença ou racionalização por ter   ferido, maltratado ou roubado outra pessoa
B. O indivíduo tem no mínimo 18 anos de idade.
C. Existem evidências de Transtorno da Conduta com início antes dos 15 anos   de idade.
D. A ocorrência do comportamento anti-social não se dá exclusivamente durante   o curso de Esquizofrenia ou Episódio Maníaco.

Manual Diagnóstico e Estatístico de   Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders –   DSM) Associação americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association   – APA), 1994.

 

Circuitos neurais do comportamento violento

A caracterização dos circuitos neurais que medeiam a agressividade é de difícil descrição, já que os mesmos circuitos são também responsáveis por controlar outros comportamentos sociais e emocionais. Dessa forma, sabe-se que a conduta agressiva é uma manifestação associada a alterações nas vias controladoras de condutas sociais e emocionais (4). Incluídos nesses circuitos estão a amígdala medial, córtex orbitofrontal e hipotálamo. (5)

Estudos em macacos identificaram o circuito ilustrado na figura 1, em que os estímulos externos são interpretados pela amígdala medial e o córtex orbitofrontal. Da amígdala, os estímulos são enviados para o hipotálamo anterior e para o núcleo do leito da estria terminal, para então seguirem, via substância cinzenta periaquedutal, até a medula e manifestar o comportamento violento.

A emergência, ou a inibição do comportamento violento resulta do resultado da contraposição de duas “forças”: Por um lado, o córtex pré-frontal é responsável pelo mecanismo denominado top down, processo que suprime a impulsividade, já a amígdala realiza o bottom up, o qual estimula o comportamento violento (6). Assim, é evidente que alterações ocorridas no córtex pré-frontal ou na amígdala resultam em desequilíbrio entre os dois processos top down e bottom up. Como consequência, tem-se a desregulação dos circuitos emocionais e maior, ou menor suscetibilidade à emergência de comportamentos violentos.

 

circuito neuroanatômico do comportamento violento em macacos. Fonte- Referência 5.

O córtex pré-frontal

O estudo do córtex pré-frontal (CPF) como determinante em atitudes violentas teve início a partir do conhecido caso de Phineas Gage, operário americano que, após ter seu CPF perfurado por uma barra de aço, tornou-se socialmente inadequado, impulsivo e, por vezes, agressivo.

Por volta dos anos 40, eram frequentes as lobotomias frontais para tratamento de doentes psiquiátricos com quadros de depressão e ansiedade. Os resultados das cirurgias eram satisfatórios no que se referia à melhora dos sintomas dessas patologias, no entanto, pacientes submetidos a tais tipos de procedimentos tornavam-se lentificados, apáticos e mostravem comportamento agressivo (7).

Em 1992, Christina Meyers et al fizeram um relato de caso em que o paciente havia sido submetido à retirada cirúrgica da hipófise devido a um adenoma. Após o procedimento, J.Z. sofreu uma mudança radical em sua personalidade: antes descrito como honesto, bom trabalhador e confiável, o paciente começou a apresentar comportamentos agressivos e irresponsáveis perante sua família e trabalho, semelhantes aos sintomas de desordem de personalidade anti-social. Através de imagens de ressonância magnética, descobriu-se uma lesão no lobo esquerdo do córtex orbitofrontal como causa da drástica mudança de comportamento sofrida pelo paciente. (8)

Em estudo mais recente, envolvendo 21 pacientes com transtorno de personalidade anti-social, imagens de ressonância magnética demonstraram diminuição de 11% no volume de substância cinzenta no CPF (9).

 

reconstrução da lesão sofrida por Phineas-Gage, mostrando lesão do córtex orbitofrontal

 

 

O papel da serotonina

Sabe-se que a ativação do córtex pré frontal envolve neurotransmissores, dentre eles, a serotonina. Há evidências de que baixos níveis de 5-HT se correlacionam com o aumento da emergência de comportamentos agressivos, possvelmente por diminuir a ativação do córtex pré frontal, ou por ter menor atuação em receptores 5-HT espalhados em outras áreas do cérebro (que incluem estruturas como hipocampo, substancia cinzenta periaquedutal e septo lateral) (5).

Em um estudo duplo-cego, a administração de fluoxetina, fármaco inibidor da recaptação de serotonina, em pacientes com transtornos de personalidade e que apresentam recorrentes episódios de comportamento agressivo levou à diminuição da incidência de comportamentos violentos em comparação ao grupo controle que recebeu placebo (10).

Estudos com ratos geneticamente modificados sem o gene Htr1b, que codifica a produção de receptores 5-HT1B, demonstraram que os mesmos são mais agressivos em comparação aos animais normais. (11).

 

Receptores de serotonina no córtex orbitofrontal e sua influencia na amígdala. Fonte- referência 1

 

 

Interação gene-ambiente 

A psiquiatria moderna tem se empenhado na procura de genes de vulnerabilidade. No entanto, não se pôde estabelecer até o momento uma relação direta entre um determinado gene e uma determinada patologia psiquiátrica. Por outro lado, as evidências sugerem que os genes se associam a respostas mal adaptativas apenas sob determinadas condições ambientais. O controle genético da sensibilidade ao ambiente é denominado interação gene-ambiente. Por exemplo, o comportamento agressivo é influenciado pelas interações complexas entre polimorfismos dos genes que medeiam o circuito serotonérgico e fatores ambientais, especialmente as experiências da infância precoce. Estudo realizado com 184 voluntários separados em dois grupos, violento e não violento, objetivou investigar a contribuição de polimorfismos para genes que codificam o transportador de serotonina (5-HTT) e  a enzima monoamino oxidase A (MAO-A) e fatores do meio. A análise de regressão logística mostrou que o melhor modelo de previsão de comportamentos violentos no adulto com poder preditivo de 74% revelava efeitos independentes de experiências adversas na infância e a presença do polimorfismo com alelo MAO-A curto. Observou-se que, no grupo considerado violento, 45% dos voluntários carregavam o alelo MAO-A curto, enquanto no grupo não violento apenas 30% tinham o mesmo.  Em relação ao gene 5-HTT, evidenciou-se que apenas nos portadores da variação com alelo curto experiências adversas na infância se associavam a maior risco de comportamento violento futuro (12).

Amígdala

Amígdala-posição anatômica e divisão em núcleos

 

 

Outra anormalidade crítica intrínseca ao comportamento agressivo é a hiperatividade do sistema límbico, incluindo a amígdala. O aumento da atividade ocorre em resposta a estímulos negativos ou provocativos, particularmente estímulos que provocam raiva. A ativação desses sistemas em face da diminuição da regulação “top-down” , envolvendo o CPF, pode levar a comportamento de raiva desinibida e agressividade.

Os circuitos envolvendo a amígdala relacionados ao comportamento agressivo são complexos. Estímulos que conotam ameaça  são encaminhados para o núcleo lateral da amígdala, que então, projeta para o núcleos da base, onde a informação sobre o contexto social derivado do córtex orbitofrontal (OFC) é integrado com a informação perceptual (13, 14). Respostas comportamentais podem ser iniciadas por meio de projeções do núcleo basal da amígdala a várias zonas corticais, e as respostas fisiológicas podem ser produzidas através de projeções dos núcleos da base para o núcleo central da amígdala e, em seguida, para o hipotálamo e do tronco cerebral. Hiper-estimulação  da amígdala pode, portanto,  provocar aumento  excessivo da sensibilidade a estímulos sociais que regulam a emoção.

Estudos de ressonância magnética nuclear funcional (fMRI) evidenciaram que pacientes com transtorno de personalidade boderline (caracterizados por grande instabilidade emocional e impulsividade), quando expostos a imagens negativas, apresentaram maior ativação da amígdala, quando comparados a indivíduos saudáveis (15, 16,17)  .

Estudo com tomografia por emissão de pósitron (PET)_ que mede o metabolismo da glicose, como um marcador do nível de atividade em diferentes áreas cerebrais_ mostrou que a exposição a filmes conteúdo emocional negativo induzia ativação da amígdala e a intensidade desta ativação se correlacionava positivamente com a capacidade de se recordar dos filmes após um período de três semanas. Este achado confirma o papel da amígdala na atribuição de valor emocional aos estímulos (bom, ruim, ameaçador, etc) e na formação da memória emocionalos indivíduos com níveis mais elevados da taxa metabólica da amígdala, em  resposta à apresentação de filmes com cenas relacionadas a emoções negativas, apresentaram  melhor lembrança  desses filmes semanas após a sua apresentação (18).      .

 

Considerações finais

O comportamento violento emerge quando o córtex pré-frontal responde aos impulsos provocativos de agressão de forma ineficiente, não inibindo o comportamento agressivo. O desequilíbrio entre a regulação do “bottom up” e “top-down”, a hiper-reatividade da amígdala, associada à inadequada inibição do CPF aumentam a probabilidade de comportamento agressivo. Alterações no desenvolvimento dos circuitos subcorticais, bem como anormalidades nos neurotransmissores também estão envolvidas nesse processo. A serotonina facilita a inibição pré-frontal e, assim, insuficiente atividade serotonérgica pode prejudicar o controle das respostas emocionais, levando a maiores chances de comportamento agressivo.

 

Cascata de eventos que tem como participante final a regulação entre o processo de bottom-up e top-down . Fonte: referência 1

 

 

 

  Violência e culpa em Macbeth
Macbeth-encontro com as três feiticeiras

Macbeth é uma tragédia escrita por Willian Shakespeare no século     XV na Inglaterra. Conta a história de um general do exército real da Escócia, chamado     Macbeth- que, ao retornar de uma batalha, na qual havia defendido     heroicamente seu país, encontra, no meio do caminho, três feiticeiras e     estas lhe profetizam que ele será o próximo rei. Uma vez em seu castelo,     sua esposa, Lady Macbeth, fica totalmente fascinada ao ouvir sobre a     profecia e persuade o marido a assassinar o atual monarca.

Após o crime, a profecia, de fato se realiza. No entanto, este é     o início de uma sucessão trágica de eventos, que envolve a separação     psíquica do casal, isolamento, loucura, suicídio e vários assassinatos. Foi     uma maldição sobre as suas vidas. Os dois foram vítimas do conflito entre o     desejo de poder, por um lado, e a consciência moral que trazia uma     exigência interna de punição, por outro.

Macbeth parece desde o início de alguma forma ciente do seu fim,     pois este é uma necessidade. Como herói trágico, porém, ele percorre todos     os passos que o conduzem ao seu destino, que é inexorável.

A história é sangrenta do começo ao fim. Contém imagens terríveis de infanticídio, inicialmente evocadas pelo discurso de Lady Macbeth  e posteriormente perpetradas pelo seu marido contra Lady Macduff e seus filhos, os quais representam ideais de maternidade, pureza, inocência e amor familiar, criando uma imagem diametralmente oposta à do casal Macbeth, que, por sinal, não tem filhos.

 

Trono manchado de sangue- de Akira Kurosawa

Trono manchado de sangue (1957)de Akira Kurosawa é uma transposição da tragédia Macbeth para     o cinema.  Além de modificar o texto     original, o diretor leva a história para o universo dos samurais, no contexto  feudal japonês. Há também elementos estéticos do teatro Nô, que é uma forma     tradicional de dramatização no Japão que envolve canto, dança e uso de     máscaras. No filme, por exemplo, a senhora Asaji (Lady Macbeth) usa uma     maquiagem, que petrifica seu rosto, ela fica longos momentos imóvel e,     quando se movimenta, seus gestos e seu andar parecem coreografados e pouco     naturais. Todos estes detalhes a tornam ainda mais sombria, mais     impenetrável e mais cruel. Talvez a mais cruel de todas as Ladys Macbeths.

 

Macbeth-de Roman Polanski-

 

Roman Polanski também traz a     tragédia para o cinema em 1971. Seu texto é mais fiel ao original e sua     filmagem procura recriar as paisagens descritas, ou sugeridas na peça     teatral. Ele filma cenários da Escócia, incluindo paisagens e castelos e     recria as vestimentas, a música e a dança medievais. Além disso, Polanski     se concentra nas transformações psicológicas do herói, na evolução de sua     loucura, no seu dilaceramento e solidão. Efeitos de fotografia e de música     são utilizados para expressar e conferir dimensão trágica ao sofrimento de     Macbeth, o qual, porém, não nos comove. Ele é herói e anti-herói, permanece     cruel e inescrupuloso até o fim, seguindo em suas atrocidades apesar da consciência de culpa e de nulidade cada vez maiorres, como mostra sua fala:

A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum.” – Cena V, Ato V. ”

Mas como pode a história de um casal tão torpe encantar platéias     do mundo todo no transcorrer dos séculos? O que há de tão especial nesta     trama?

Primeiramente é preciso que se entenda que o assassinato do rei     não foi apenas um crime estratégico, pois o rei não era um simples regente     temporal. Ao contrário, ele refletia uma escolha divina para ocupar aquela     posição e isto o recobria de uma aura sagrada. A dimensão do ato de Macbeth     talvez nos nossos tempos só pudesse ser comparada ao parricídio, ou fratricídio     (o que lembra a culpa da personagem Michael Corleone- também uma figura com     traços macbethianos- em O poderoso     chefão 3 por ter assassinado seu próprio irmão).

Macbeth não foi simplesmente uma vítima das feiticeiras, mas ao contrário, escolheu seus próprios atos e sua culpa lhe sussurra isso o tempo todo. A profecia não era uma predestinação obrigatória. As feiticeiras apenas o instigaram ao dizer o que ele, em seu íntimo, já desejava: tornar-se rei.  Além disso, elas nunca lhe sugerem o crime.

O conflito que conduz à ruína é que Macbeth, de fato, amava e admirava seu soberano. Ele não era um psicopata frio e ardiloso, mas um nobre guerreiro com valores morais. A tragédia se inicia confrontando seus atos heróicos na batalha contra os noruegueses, por um lado, com a traição do “impiedoso” Macdonwald e do Thane de Cawdor, por outro. Enquanto Macbeth executa o primeiro, o segundo_“traidor desleal e pérfido”_ é condenado à morte pelo rei que transfere o título de Thane de Cawdor a Macbeth,fazendo dele pelas suas provas de lealdade e coragem o seu predileto.

Após o crime, o arrependimento de Macbeth é imediato, pois já declara: “Conhecer o que fiz… Melhor me fora se não me conhecesse”. Até mesmo antes do ato, ele já prevê suas conseqüências, como se vê em seu solilóquio:

“Se feito fosse quanto fosse feito, seria bom fazermo-lo de pronto. Se o assassínio enredasse as conseqüências e alcançasse, com o fim, êxito pleno; se este golpe aqui fosse tudo, e tudo terminasse aqui em baixo, aqui somente, neste banco de areia da existência, a vida de após morte arriscaríamos. Mas é aqui mesmo nosso julgamento em semelhantes casos; só fazemos ensinar as sentenças sanguinárias que, uma vez aprendidas, em tormento se viram do inventor. Essa justiça serena e equilibrada a nossos lábios apresenta o conteúdo envenenado da taça que nós mesmos preparáramos”.

Outro aspecto trágico é que a     cumplicidade num ato tão hediondo causa a separação de um casal que antes     se amava. Cada um deverá expiar a sua culpa sozinho e a presença do outro     passa a ser uma acusação.

Além da beleza poética, Macbeth     nos abala por nos confrontar com uma possibilidade que existe em todos nós,     uma sombra remota que nos habita. Ele representa a batalha entre o bem e o     mal que se trava todos os dias na nossa consciência e aponta quão tênue é a     distância entre a sanidade e a loucura, entre o heroísmo e o crime.

 

 

Thales Gonçalves, Fernando Sumita, Ricardo Casagrande e João Paulo Hahmed-acadêmicos do curso de medicina-FCS/UFGD-XIIa turma.

Elisabete Castelon Konkiewitz-médica neurologista e psiquiatra, professora adjunta da FCS/UFGD.

 

 

Referências bibliográficas

 

  1. Larry, J.; Siever, M.D.: Neurobiology of Agression and Violence. Am J. Psychiatry 165:4, April 2008
  2. MENDES, Deise Daniela et al . Study review of biological, social and environmental factors associated with aggressive behavior. Rev. Bras. Psiquiatr.,  São Paulo,  2012.
  3. World Health Organization: Third Milestones of a Global Campaign for Violence Prevention Report 2007: Scaling Up. Geneva, Switzerland, WHO, 2007
  4.  Davidson, R.J. et al. Dysfunction in the Neural circuitry of emotion regulation –A possible prelude to violence. Science 289, 591 (2000)
  5. Nelson, R.J.; Trainor, B.C. Neural mechanisms of aggression. Nat Rev Neurosci. 2007 Jul;8(7):536-46.
  6. Siever, L. J. Neurobiology of aggression and violence. Am J Psychiatry 2008; 165: 429 – 442
  7. Machado, Angelo. Neuroanatomia Funcional. 2 ed. São Paulo : Atheneu, 1993.
  8. Meyers, C.A., Berman, S.A., Scheibel, R.S., Hayman, A. Case Report: Acquired Antisocial personality disorder associated with  unilateral left orbital frontal lobe damage. J Psychiatr Neurosci, Vol. 17, No. 3, 1992.
  9. Raine, A., Lencz, T. Bihrle, S., LaCasse, L., Colletti, P. Reduced prefrontal gray matter volume and reduced autonomic activity in antisocial personality disorder. Arch Gen Psychiatry. 2000; 57: 119-127.
  10. Coccaro EF, Kavoussi RJ: Fluoxetine and impulsive aggressive behavior in personality-disordered subjects. Arch Gen Psychiatry 1997; 54:1081–1088
  11. Saudou, F. et al. Enhanced aggressive behavior in mice lacking 5-HT1B receptor. Science 265, 1875–1878 (1994).
  12. Reif A, et al; Nature and Nurture Predispose to Violent Behavior: Serotonergic Genes and Adverse Childhood Environment, Neuropsychopharmacology (2007)
  13. D.Ongur  and J. L. Price, Cereb. Cortex 10,Oxford Journals, 206-219, 2000.
  14. C. Cavada et al., Cereb. Cortex 10, Oxford Journals, 220-237, 2000
  15. Herpetz SC, Dietrich TM, Wenning B, Krings T, Eberich SG, Willmes K, Thorn A, Sass H: Evidence of abnormal amygdale functioning in borderline personality disorder: a functional MRI study. Biol Psychiatry 2001; 50:292–298
  16. Koenigsberg HW, Prohovnik I, Lee H, Pizzarello S, New AS, Siever LJ: Neural correlates of the processing of negative and positive social scenes in borderline personality disorder (abstract). Biol Psychiatry 2007
  17. Minzenberg MJ, Fan J, New AS, Tang CY, Siever LJ: Front-limbic dysfunction in response to facial emotion in borderline personality disorder: an event-related fMRI study. Psychiatry Res 2007; 155:231–243
  18. Cahill, L. et al. (1996) Amygdala activity at encoding correlated with long-term, free recall of emotional information Proc. Natl. Acad. Sci. U. S. A. 93, 8016–8021

 

 

One thought on “Literatura, cinema e neurociências: “Macbeth”, “Laranja mecânica”, “Pulpfiction” e a Neurobiologia do comportamento violento- por Thales Gonçalves, Fernando Sumita, Ricardo Casagrande, João Paulo Hahmed e Elisabete Castelon Konkiewitz

  • 16/01/2013 em 23:57
    Permalink

    Muito oportuno este ensaio. Trazendo informações da tragédia clássica, as quais têm embasamento na neurociências. Parabéns aos colaboradores.
    Lúcio

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *