Neuroestética aplicada à música: a apreciação da arte corresponde a princípios de organização neurobiológica (Parte 2)

[Continuação -Para acessar a primeira parte do texto clique aqui: Parte 1.]

A arte é um fenômeno universal, ou seja, está presente em todas as culturas existentes, ou extintas. Embora possa parecer a princípio uma atividade supérflua, ela em nenhum momento histórico desapareceu, ou foi substituída. Este é um fato instigante, uma vez que as pressões ambientais e culturais determinaram, no decorrer dos milênios, enormes mudanças no comportamento e nas habilidades humanas. A preservação e a universalidade da arte já são por si só um claro indício do seu valor adaptativo e da sua inextricabilidade daquilo que se tenta entender como humano.

Há diversas evidências de que a arte não é um produto cultural aleatório, mas, ao contrário, uma necessidade biológica que desempenha um enorme papel em nossas vidas, contribuindo para as nossas funções cognitivas, emocionais e sociais. Tanto a produção quanto a apreciação da arte envolvem o recrutamento de diferentes circuitos cerebrais, os quais também são elementares para outras funções, como o reconhecimento de objetos, o processamento da linguagem, a indução de respostas emocionais, etc. Por este motivo, é plausível que o processo subjacente à percepção da beleza de uma obra seja determinado, ao menos em parte, pelas características biológicas do cérebro humano, as quais, por sua vez, foram moldadas durante a evolução.

O pintor Modigliani representa a mulher de forma sintética e simplificada
O pintor Modigliani representa a mulher de forma sintética e simplificada

A Neuroestética é uma nova área de investigação que se propõe a compreender os substratos neurobiológicos e evolutivos da percepção do belo.     Neste texto, que é uma continuação daquele postado em 09 de junho, buscamos correlacionar as propostas da Neuroestética, as quais foram basicamente desenvolvidas em torno das artes visuais, com a sensação psicoacústica e a apreciação estética musical.

Lei do Isolamento

Caracteriza-se pelo enfoque de um único aspecto da informação visual, como a cor, a forma ou o movimento, com exclusão, ou redução de outros elementos também pertinentes aos objetos representados. Essa retirada de elementos possui resposta efetiva por simplificar a informação, de forma a permitir que a atenção, que é um recurso cerebral de capacidade limitada, foque o aspecto visual selecionado e o aprecie sem interferências.

Neste quadro de Walter Klemm as cores forma reduzidas ao preto e ao branco, de forma que a atenção se direciona às formas e o cérebro infere que elas correspondem à representação de pessoas.
Neste quadro de Walter Klemm as cores foram reduzidas ao preto e ao branco, de forma que a atenção se direciona às formas e o cérebro infere que elas correspondem à representação de pessoas.

Durante a execução de uma música percebe-se que o isolamento de alguns de seus constituintes sonoros, como os solos de guitarra no Gênero Rock, pode, por vezes, levar a uma intensificação da apreciação estética. Em analogia com as artes visuais, esta intensificação poderia ser explicada pela diminuição do caos sonoro instituído pela sobreposição dos diferentes instrumentos, facilitando o direcionamento da atenção para um único timbre e melhorando a identificação e a segmentação temporal de padrões de notas.

Amendoeira em flor, de Hiroshige Utagawa.O minimalismo da arte japonesa como exemplo da lei do isoalmento.

Lei do Agrupamento – a distinção entre forma e fundo

Encounter, de M. C. Escher

Esta lei foi anteriormente descrita por psicólogos pesquisadores na linha Gestalt que estudaram a tendência do cérebro de se esforçar, diante de uma imagem confusa, ou ambígua, na tentativa de construir uma unidade a partir de elementos separados, organizando e atribuindo um significado coerente à informação visual e consequentemente ao seu mundo (Ramachandran, 2008; 2010). Ao descobrir, ou inferir a partir de fragmentos o que a imagem representa, o homem tem a experiência prazerosa do deciframento.

É plausível que a habilidade do cérebro visual de identificar uma imagem, mesmo que apresentada de forma parcial, ou sob um ângulo de perspectiva atípico, ou sob baixa luminosidade e de diferenciá-la do seu fundo foi um fator importante na sobrevivência do homem, por exemplo, permitindo a detecção de alimentos, ou de predadores camuflados. (Ramachandran, 2008; 2010).

O Princípio da Continuidade afirma que o cérebro tende a agrupar e unir elementos gráficos que sugerem o contorno de uma mesma imagem, buscando reconstruí-la mentalmente. De fato, durante a percepção visual, as informações, como cor, movimento, localização e forma, são transmitidas de forma fragmentada, ativando diferentes áreas específicas do córtex visual e depois agrupadas em áreas de processamento secundário e terciário, resultando no reconhecimento consciente da imagem como um todo. Deste modo, o cérebro realiza um trabalho de recomposição de elementos que foram aferidos separadamente. A sua natureza é interpretar e compreender os sinais que recebe para poder elaborar respostas adequadas e justamente quando uma obra de arte o desafia nesta tarefa, ela o estimula e lhe causa prazer (Ramachandran, 2008; 2010).

Young Woman Knitting, by Berthe Morisot- nesta obra impressionista, o cérebro reconhece a imagem da mulher, embora a mesma seja mais insinuada que revelada em seus detalhes.
Young Woman Knitting, by Berthe Morisot – nesta obra impressionista, o cérebro reconhece a imagem da mulher, embora a mesma seja mais insinuada que revelada em seus detalhes.

Na música, o cérebro também se esforça em organizar os estímulos recebidos na percepção de uma unidade coerente. Assim, a união ou agrupamento dos elementos musicais, sejam eles melódicos ou rítmicos, devem coexistir de forma harmônica gerando um efeito consonante (do latim consonare, significando soar junto) gerando harmonias, acordes ou intervalos estáveis. A música consonante ativa áreas como a ínsula, o córtex orbitofrontal e o córtex pré-frontal ventro-medial (todas associadas à recompensa e ao estado de alerta (Panksepp, 2002)), assim como o sistema mesolímbico dopaminérgico, a mais importante via neural relacionada à recompensa (Blood e Zatorre, 2001; Blood et al., 1999; Menon e Levitin, 2005). Por outro lado, uma música dissonante, ou seja, aquela cujo agrupamento não é harmonioso, ativa o giro parahipocampal_estrutura paralímbica ativada durante estados emocionais desagradáveis, assim como pela apresentação de figuras com valência emocional negativa (Panksepp, 2002) e a  amígdala_ estrutura chave no processamento do medo e com a qual o giro parahipocampal tem fortes conexões recíprocas (Bechara et al., 2003; Mesulam, 1998).

“As expectativas formadas pelos ouvintes enquanto escutam uma música são também universais através das culturas. A expectativa é um componente básico da percepção musical e opera em uma variedade de níveis, incluindo os níveis melódico, harmônico, métrico e rítmico, e remete à questão “o quê” e “quando”, ou seja, quais tons ou acordes espera-se que ocorram em uma dada sequência musical, e quando devem ocorrer. Presume-se que a expectativa não apenas desempenhe um papel importante em como os ouvintes agrupam os eventos sonoros em padrões coerentes, mas também na apreciação dos padrões de tensão e relaxamento que contribuem para os efeitos emocionais da música. Ambas as respostas cognitiva e emocional à música dependem de se, quando e como as expectativas são preenchidas” (referência 16-tradução dos autores).

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Bianca Diana Alves, Nathaly Marianne da Cruz Lemes, Thaynara Fetsch Werner Silva e Thiago Vieira do Nascimento – graduandos do curso de Medicina – XII turma – Faculdade de Ciências da Saúde – UFGD.

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