Arte e Sinestesia

Arte e Sinestesia

Kamille Caiaffa e Glaucio Aranha

Para as neurociências, a sinestesia é um fenômeno neurológico que afeta os sentidos, provocando a convergência entre eles. A experiência sinestésica torna possível, por exemplo, olhar para a cor de uma flor e sentir cócegas, e outras convergências. Existem vários tipos de sinestesia e as pessoas que as possuem chamadas “sinestetas” (ou “sinestésicas”). Alguns sinestetas famosos são os cantores Charli XCX, Lady Gaga, Pharrell Williams e Maggie Rogers (BBC, 2017). Mas além de ser um processo neurobiológico, a sinestesia tem servindo também de inspiração para novas propostas artísticas.

Nas artes, podemos observar o fenômeno sinestésico ocorrendo em múltiplas formas e propostas. Rosangella Leolote, no artigo “Multisensorialidade e sinestesia: poéticas possíveis?” (2014), publicado na revista científica ARS, aborda a questão das poéticas contemporâneas apoiadas na convergência entre multissensoriedade e sinesteria. Neste estudo, ela apresenta alguns aspectos sobre a percepção relacionada ao uso de tecnologias emergentes, tanto para a produção artística, quanto para a experiência de fruição da obra, ou seja, a experiência de estar como receptor de um produto artístico. Ao articular conceitos sobre modos interativos, multissensoriais sinestésicos e pseudossinestésicos, ela verificou que há uma certa confusão terminológica entre certas propostas poéticas ditas “sinestésicas” e o fenômeno propriamente dito. Em geral, tem-se produções baseadas em multisensorialidade, mas sem envolver a sinestesia propriamente dita.

Ela destaca, ainda, que a multimodalidade também tem sido largamente utilizada com o objetivo de criar obras ditas “sinestésicas”, mas alerta para o fato de que há um equívoco corrente no campo da arte interativa. Com frequência, é possível encontrar descrições, relatos e avaliações sobre obras que oferecem inúmeros estímulos ao interator (receptor que interage com a obra), afirmando-se serem “obras sinestésicas”, quando, na verdade, o termo deveria ser aplicado à experiência do interator e não à obra, pois a experiência da sinestesia é do indivíduo e não inerente à obra.

A sinestesia é também um resultado perceptivo, mas de natureza não corriqueira, onde, através de um dado sentido, se experimenta uma percepção relativa a um sentido diferente daquele que forneceu o input. Ao ver a cor verde, ou a palavra verde, sente-se gosto, literal, de limão, por exemplo. (Leolote, 2014, online).

No livro “Sinestesia, arte e tecnologia”, de Sérgio Basbaum, é citado um caso curioso: uma mulher que percebia sons como sabores e, ao escutar o nome “Richard”, sentia gosto de chocolate em sua boca. Na mesma obra, após fazer um levantamento das principais teorias neurológicas sobre o fenômeno da sinestesia, Basbaum apresenta uma discussão sobre como este fenômeno neurobiológico acaba tomando uma conotação artística ao ser usada como técnica para a construção de metáforas na poesia, teatro, música, pintura e cinema. Ou seja, como o uso de um sentido pelo outro, mesmo para não sinestetas, acaba gerando uma experiência artística, como nos seguintes trechos literários:

“O céu ia envolvendo-a até comunicar-lhe a sensação do azulacariciando-a como um esposo, deixando-lhe o odor e a delícia da tarde.” (Gabriel Miró)

Insônia roxa. A luz a virgular-se em medo. / O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou / Gritam-me sons de cor e de perfumes.” (Mário de Sá-Carneiro)

“E um doce vento, que se erguera, punha nas folhas alagadas e lustrosas um frêmito alegre e doce.” (Eça De Queiros)

Pedro Calabrez, no livro “Em busca de nós mesmos”, apresenta o relato de alguns alunos, que evidenciariam experiências de sinestesia relacionados a experiências com cores e sons. Dentre eles, um indivíduo relatou ver uma cor específica ao olhar para um determinado número. Outro aluno teria informado que sentia um sabor amargo ao ouvir a nota musical “Ré”. Somam a esses depoimentos outros envolvendo fenômenos sinestésicos, tais como: sentir sabor azedo ao ouvir a nota musical “Sol”, sentir um “gosto estranho” ao olhar para o prédio da Fiesp etc.

Considerar a sinestesia no âmbito do universo artístico abre para questões muito interessantes e cenários de estudo bem amplos. Nas últimas décadas, tem ganhado destaque um campo de estudos denominado Neuroestética (Semeler & Do Carmo, 2011), que busca estudar a convergência entre as áreas de artes e de neurociências. A neuroestética funciona, assim, como uma ponte entre estas duas esferas de conhecimento. A sinestesia, por exemplo, é uma abordagem temática que interessa aos pesquisadores de neuroestética. Isto porque é um tema que envolve percepção, semiose (produção de sentido), cognição, emoções e tantos outros.

Referências

BARROS FILHO, Clóvis de; CALABREZ, Pedro. Em Busca de Nós Mesmos. Porto Alegre: Citadel, 2020.

BASBAUM, Sérgio. Sinestesia, arte e tecnologia: fundamentos da cromossonia. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2002.

BBC. A artista que ouve cores e pinta sons: como é e o que faz a sinestesia? BBC News – Brasil [online], 8 maio 2017. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/geral-39813604.amp>

LEOLOTE, Rosangella. Multisensorialidade e sinestesia: poéticas possíveis? ARS (São Paulo), Vol. 12, n. 24,  Jul-Dec, 2014. Disponível em https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2014.96737

SEMELER (UFRGS), A. M., & DO CARMO (UFPel), J. S. (2011). A Neuroestética como retomada da experiência estética enquanto forma de conhecimento visual. Intuitio4(2), 04-16. Recuperado de https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/10271


Kamille Caiaffa é estudante de graduação da Escola de Belas Artes (EBA), na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua no NeuroTeen, desde 2021, com pesquisa temática e desenvolvimento de conteúdos para as mídias do projeto. Tem interesse na área de artes, criatividade e neurociências, bem como em divulgação científica.


Glaucio Aranha é professor adjunto no Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde (NUTES), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vinculado ao Laboratório de Vídeo Educativo (LVE). É doutor em Letras (área: Literatura Comparada), pela Universidade Federal Fluminense (UFF); mestre em Comunicação, Imagem e Informação (área: Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação), pela Universidade Federal Fluminense (UFF); e graduado em Direito, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atua como pesquisador-líder do grupo de pesquisa *Narratividade, produção de sentido e representações da realidade*, no qual coordena os projetos de pesquisa: *Linguagem e imaginário em vídeos educativos: efeitos atencionais e emocionais da construção discursiva de verossimilhança*, *Narrativas fantásticas, imaginário científico e produção de sentido* e é co-líder, em parceria com o Prof. Dr. Alfred Sholl-Franco (IBCCF/UFRJ), do grupo de Pesquisa *Neuroeduc – Centro de Estudos em Neurociências e Educação* (OCC/UFRJ), no qual integra a coordenação dos projetos de pesquisa *Narratividade, semiose e cognição*, com foco no uso de narrativas no ensino e na divulgação científica. É pesquisador associado do programa *Ciências e Cognição – Núcleo de Divulgação Científica e Ensino de Neurociências*, da UFRJ (CeC-NuDCEN/IBCCF/UFRJ), onde desenvolve estudos sobre semiótica cognitiva e linguística textual. Tem experiência nas áreas de: teoria literária e da narrativa, linguística, semiótica, estética de massa e divulgação científica. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1047823602449101

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