O HIV e sua Toxicicidade Neuronal – resenha do artigo “Neuronal Toxicity in HIV CNS disease”, publicado em Julho de 2012 na “Future Virol” – por Fabiana Braga

O vírus da síndrome da imunodeficiência adquirida – HIV– surgiu da mutação de um outro vírus, chamado SIV, encontrado no sistema imunológico de macacos africanos. O SIV presente no macaco – verde teria criado o HIV2, uma versão menos agressiva e mais tardia da AIDS; já, os chimpanzés deram origem ao HIV1, a forma mais mortal. As primeiras transmissões para os humanos teriam acontecido em tribos da África Central que caçavam e domesticavam esses macacos. O surgimento da doença é marcado pelas divulgações dos primeiros casos no início da década de 80, em uma época em que se acreditava ter o domínio das doenças infecciosas1.
O HIV infecta um subconjunto de células imunitárias, incluindo células T e macrófagos circulantes, sendo necessário principalmente a expressão do receptor CD4 e dos correceptores CXCR4 e CCR5 em suas células hospedeiras. A infecção também pode atingir o Sistema Nervoso Central (SNC), justamente o exposto no artigo que também foca em estudar como ela ocorre, bem como os seus efeitos na aptidão neuronal e em seu funcionamento. Estudos recentes concluem que a disfunção do SNC associada ao HIV é devido, em grande parte, aos mecanismos indiretos, relatados no artigo, que danificam os neurônios.
A principal via pela qual o vírus entra no SNC é através do tráfego de macrófagos infectados na corrente sanguínea por meio da barreira hematoencefálica. No cérebro, a micróglia (variedade de macrófago) e os próprios macrófagos são os principais alvos celulares para a infecção e replicação viral. Acredita-se que essa entrada se dê durante os primeiros estágios da contaminação, semeando o cérebro com o vírus, o qual se replica e libera os vírions (partícula viral fora da célula) no parênquima cerebral. Durante épocas de alta viremia, o vírus pode voltar ao sistema nervoso e se reproduzir.
Para se entender como o HIV age no tecido nervoso, faz – se necessário uma explicação de como acontece essa replicação. Brevemente, a entrada do HIV na célula – alvo começa com a interação da glicoproteína gp160, constituída de dois componentes: gp120 e gp41, com o receptor CD4 da célula.

Ocorre, então, uma alteração conformacional na gp120, desmascarando o local de ligação do correceptor. Após a interação da gp120 com os correceptores CXCR4 ou CCR5, a gp41 se insere na membrana da célula hospedeira para aproximá-la ao envelope viral a fim de que a fusão e penetração do vírus ocorram. Posteriormente, já dentro da célula, a partícula viral libera duas fitas de RNA viral e três enzimas que serão de grande importância para a inserção do genoma viral na célula e na fabricação de novos vírus: protease, transcriptase reversa e integrase.

Conforme descrito em um comentário de 2002, no “Journal of Infectious Diseases”, a produção e liberação de partículas virais ou proteínas secretadas podem afetar a aptidão de células neuronais sendo que a morte desses neurônios pode se dar de duas formas: diretamente ou indiretamente. No primeiro caso, várias proteínas do HIV-1 como a Tat e a própria gp120 são moléculas tóxicas para os neurônios. A primeira induz a morte de células neuronais a partir de receptores presentes nas superfície dessas células (como a CXCR4 e receptor de N-metil-D-Aspartato – NMDA); a segunda promove elevação intracelular de cálcio a partir dos receptores de NMDA promovendo a morte das células nervosas. A literatura dedicada aos efeitos e mecanismos neurotóxicos dessas proteínas é extensa impossibilitando no artigo a abrangência de todos eles.
Por outro lado, indiretamente, essa morte pode-se dar através de células não neuronais como as micróglias e os astrócitos2,3 os quais podem liberar substâncias (como citocinas, especialmente TNF-α, mediadores pró – inflamatórios e proteínas virais) que se difundem, alterando significativamente a aptidão neuronal e levando à morte por necrose ou por apoptose3. O HIV-1 se aproveita da presença desses mediadores no monócito infectado para, mais facilmente, atravessar o endotélio cerebrovascular, utilizando também vias paracelulares, intensificando a entrada de mais monócitos carreadores do vírus para o SNC.

Contudo, apesar das evidências apresentadas, existem estudos que apontam um papel de proteção para essas substâncias potencialmente neurotóxicas. Seria uma situação de neuroproteção, em que os neurônios do septo, do córtex, do hipocampo etc. poderiam estar protegidos pelo TNF-α. Receptores de TNF têm a capacidade de ativar substâncias que se ligam ao DNA, estimulando vários mecanismos de proteção neuronal contra diversas agressões. Além disso, os receptores dos astrócitos, através do TNF-α, pode agir protegendo os neurônios da toxicidade de proteínas como a gp120. Portanto, essa citocina parece mediar a neuroproteção ao mesmo tempo, em que algumas circunstâncias, pode exercer um efeito neurotóxico. A capacidade do TNF de se ligar, nos neurônios cerebrais, a diversos subtipos de receptores, de diferentes afinidades, pode promover lesão, morte ou mesmo neuroproteção4.
As possíveis manifestações de patologia do SNC resultantes da infecção associada ao HIV são complexas e incluem uma gama de alterações. As características clínicas dos transtornos neurocognitivos associados ao HIV (HAND) variam de alterações neurocognitivas suaves para a forma mais grave: a demência associada ao HIV (HAD). Em alguns pacientes com HIV, no entanto, não há alterações cognitivas detectáveis. A eficácia da terapêutica antirretroviral combinada (cART) para controlar a carga viral periférica e permitir a recuperação do sistema imunológico tem um impacto significativo sobre a prevalência de HAND.
Por fim, a perspectiva de futuro parece promissora. Como descrito em uma recente revisão, os antirretrovirais têm resultado em uma menor carga viral no líquor e melhorado a função neurocognitiva em pacientes com HIV. Em combinação a esses antirretrovirais , terapias adjuvantes, que visam melhorar a resposta do hospedeiro a fatores tóxicos, podem ser potencialmente importantes, também. É certo que uma melhor compreensão dos mecanismos moleculares subjacentes à lesão neuronal e à disfunção – durante a progressão da AIDS a nível neurológico – irão permitir as avaliações do potencial de recuperação e de estratégias de tratamento mais específicas e eficazes. Como antirretrovirais melhoram, mantendo a latência viral no sistema nervoso central, eles se tornam uma abordagem promissora e extremamente relevante para proteger os neurônios e amenizar déficits graves. O HIV, juntamente com a AIDS, desde os seus primórdios até os dias atuais continua representando desafios que ultrapassam a medicina e atingem o comportamento, a cultura e os costumes da humanidade, sendo, enfim, de grande relevância um contínuo estudo desse vírus altamente mutável.
Fabiana Braga Sanches, natural de Campo Grande – MS, 21 anos de idade e graduanda da turma XIV no curso de Medicina pela Universidade Federal da Grande Dourados. Bolsista do Projeto Jovens Talentos para a Ciência — Capes/CNPq.
REFERÊNCIAS
1. M. Cristina. Saúde e poder: a emergência política da Aids/HIV no Brasil. Rio de Janeiro, 2002
2. Gorry P, Purcell D, Howard J, McPhee D. Restricted HIV-1 infection of human astrocytes: potential role of nef in the regulation of virus replication, 1998
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/9718129
3. Gorry PR, Ong C, Thorpe J, Bannwarth S, Thompson KA, Gatignol A, Vesselingh SL, Purcell DF. Astrocyte infection by HIV-1: mechanisms of restricted virus replication, and role in the pathogenesis of HIV-1-associated dementia, 2003
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15049431
4. A.Araújo, A.Prufer, S.Pereira. A neuropatogenia do vírus da imunodeficiência humana, 1996
http://www.scielo.br/pdf/anp/v54n2/27.pdf