Percepção e construção da realidade – parte 3: O cérebro cria a perspectiva a partir do desajuste da visão binocular, por Edward Ziff e Elisabete Castelon Konkiewitz

O cérebro cria a perspectiva a partir do desajuste da visão binocular

Edward Ziff e Elisabete Castelon Konkiewitz

Sottoporto de Jill Baker

Ao atravessarmos uma rua movimentada, ninguém questionaria que o mais importante nesta situação não seria a capacidade de reconhecer as diferentes cores e formas dos veículos, mas sim a distância em que estão de nós, ou seja, a visão de profundidade, ou estereoscopia. Provavelmente, nossos antepassados, ao fugirem de predadores, ao caçarem suas presas, ao pularem de alturas, etc., também dependeram desta capacidade.  Seria ela resultado de um aprendizado? Poderia ela ser treinada? Quais são as suas bases neurobiológicas?

 

A percepção visual é composta por múltiplos elementos: cor, tamanho, forma, profundidade, movimento, localização, etc. Estes elementos compõem estímulos que chegam por diferentes vias ao córtex visual, acionando áreas separadas e específicas. No entanto, quando enxergamos, a nossa percepção consciente não é decomposta, mas unificada e simultânea. Isto se deve ao fato de que as mais de 30 áreas do córtex visual atuam em um complexo processo sequencial de integração. Áreas mais específicas (por exemplo, aquelas cujos neurônios respondem apenas a determinados espectros de cor, ou apenas a uma determinada localização do objeto) se conectam com áreas menos específicas, capazes de receber e sintetizar informações de naturezas diversas.

A ilusão de unidade é quebrada, quando nos deparamos com pessoas, nas quais um dos elementos da percepção visual está ausente, ou prejudicado, como aconteceu com o famoso escritor e neurologista Oliver Sacks e com a neurobióloga Susan Barry.

A visão estereoscópica é importante para a memória espacial, que fica comprometida  com a visão monocular. Os professores Hubel e Wiesel demonstraram que a visão binocular, por sua vez, depende do desenvolvimento de neurônios binoculares no córtex visual, ou seja, de neurônios específicos que disparam apenas ao receberem estímulos simultâneos provenientes das duas retinas. Por volta de 5% e 10% da população têm pouca ou nenhuma visão estereoscópica.

 

Podemos nos perguntar – como enxergamos conscientemente somente uma imagem, quando temos duas imagens distintas projetadas uma em cada olho? A resposta é que o nosso cérebro integra estas imagens, criando assim uma percepção do mundo que nos parece coerente.

 

Oliver Sacks nasceu em 1933 em Nova Iorque, ele é neurologista e escritor. No seu livro O Olhar da Mente” (Editor: Alfred A. Knopf, 2010), ele descreve o caso de Susan Barry, assim como a sua própria história. Ele conta que, ao desenvolver um melanoma em uma das retinas, perdeu grande parte da capacidade de visão estereoscópica. Isto levou a situações dramáticas, por exemplo, ao subir, ou descer escadas (pela dificuldade em estimar a altura dos degraus), ao atravessar ruas e até mesmo ao se aproximar das pessoas.

 

 

 

 

 

Susan Barry é professora de Neurobiologia em Mount Holyoke College, Massachusetts. Ela cresceu estrábica. O estrabismo causa um desalinhamento tão acentuado dos olhos que nem mesmo um cérebro tão cheio de artimanhas como o nosso dá conta de unir as imagens, por isso os olhos de Susan Barry não funcionavam em conjunto e ela via o mundo com um olho de cada vez.  Ela não via a profundidade diretamente, mas podia inferi-la através de outras pistas (pistas monoculares: vide texto abaixo).  Susan Barry foi submetida à cirurgia nos músculos de seu olho direito  e no seu olho esquerdo aos dois  aos nove anos de idade para correção do estrabismo. Quando ela estava com 40 anos, teve dificuldade com a estimativa de distância.   Usando óculos prismáticos com lentes polarizadas para projetar imagens diferentes nos dois olhos, ela viu retratos estéreoscópicos dos objetos. Este treino lhe deu a capacidade de juntar as imagens. Finalmente, já com cerca de 50 anos, ela pôde adquirir a visão binocular!

 

estrabismo

 

 “Eu quis fazer algo que uma criança aprende em média nos primeiros seis meses de vida que era harmonizar os movimentos conjuntos dos dois olhos: aproximá-los para fixar um objeto próximo e voltá-los para fora, para fixar um mais distante. Mas eu não fazia isso. Abria um olho e voltava ao outro. Através do treinamento aprendi a mover os olhos em sincronia… O movimento ajudou-me a perceber. E assim por aprender a movê-los na posição correta, cada olho relatou informações muito semelhantes para o cérebro. E, para minha surpresa absoluta, eu desenvolvi visão de profundidade”.

– Susan Barry, 2011

 

Charles Wheatstone (6 Fevereiro 1802 – 19 Outubro   1875) que, em 1833, inventou o estereoscópio demonstrou elegantemente em seus experimentos como o cérebro cria a perspectiva a partir da disparidade entre as duas imagens de cada olho.

O estéreoscópo é um instrumento óptico que apresenta ao espectador duas imagens semelhantes, porém diferentes, uma a cada olho e a disparidade das imagens é a base do efeito de profundidade.

Com o estereoscópo de Wheatstone, as fotos, quando apresentadas isoladamente, são vistas como bidimensionais. No entanto, se as duas imagens são vistas simultaneamente, tendo a disparidade entre elas previamente calculada de acordo com a distância entre os dois olhos do espectador, então estas imagens serão juntadas pelo cérebro e uma única imagem em três dimensões é criada. As fotografias abaixo parecem idênticas, mas se medirmos e compararmos as distâncias entre dois pontos veremos que são distintas.

 

Wheatstone já havia, na sua época, sugerido que este processo é de natureza automática e inconsciente.

“The projection of two obviously dissimilar pictures on the two retinas, when a single object is viewed, while the optic axes converge, must therefore be regarded as a new fact in the theory of vision.”

Sir Charles Wheatstone, 1838

Hubel e Wiesel disseram que os neurônios no córtex não processam a informação binocular, se o animal não receber estimulação binocular nos estágios iniciais da vida, mas Susan Barry mostrou que, aparentemente, há neuroplasticidade suficiente para reativar as células binoculares, recuperando, ou inaugurando, mesmo no adulto, a capacidade de visão estereoscópica.

Para maiores detalhes: visão estereoscópica e disparidade binocular

A perspectiva na arte ocidental

 

Em uma observação breve e panorâmica, pode-se acompanhar como a perspectiva foi concebida e elaborada na pintura ocidental ao longo dos séculos.

A pintura medieval valorizava o preenchimento de toda a superfície do quadro, mas não criava a ilusão de profundidade.

Lamentações, de Mestre de Nerezi, 1164
Os Efeitos do Bom Govenro de Ambrogio Lorenzetti, 1338

 

O pintor Giotto, no século XIV, já inicia uma preocupação com a introdução da perspectiva, buscando um ponto de convergência no horizonte.

Jesus diante de Caifás, Giotto, 1305

 

A escola de Atenas, Rafael, 1518

No entanto, é no século XV que as leis da perspectiva da pintura clássica se estabelecem.

O quadro de Rafael-A escola de Atenas- é um exemplo do desenvolvimento máximo da técnica de convergência para um ponto de fuga.

Os renascentistas também redescobriram outras pistas visuais monoculares, já usadas na Antiguidade, a partir das quais o nosso cérebro infere a profundidade. Por exemplo, o tamanho de um objeto em relação aos outros (objetos menores são percebidos como mais distantes), a oclusão de um objeto por outro (o observador infere que o objeto que oclui a visão do outro deve ser o mais próximo). O jogo de sombras com claro e escuro também cria ilusão de profundidade.

O retorno do filho pródigo, Rembrandt, 1669

 

 No período barroco, Rembrandt usa não apenas o ponto de fuga, mas também as diferenças de luminosidade para criar a ilusão de perspectiva. As pessoas e os objetos mais escuros são percebidos como estando mais ao fundo. Além disso, a luz cria também a dramaticidade e a emoção religiosa que a imagem transmite.

No século XIX, os experimentos de Wheastone, porém, demonstraram que a forma como criamos estereoscopia não corresponde à perspectiva linear de um ponto de fuga proposta pelos renascentistas, a qual é um artifício da visão monocular.

Paul Cezanne foi um dos pintores que se interessaram por estas descobertas científicas. Estudando o fenômeno da visão binocular, ele tentou mostrar a realidade de um modo até então inédito: ao apresentar simultaneamente as imagens sob diferentes ângulos, ele explicitava a disparidade binocular e ampliava as possibilidades de percepção. Ao mesmo tempo, isto foi um movimento de libertação das leis da iconografia clássica e da obrigação de representação fidedigna da realidade.

Bibemus Quarry, Cezanne, 1895

 

Cezanne foi o mestre inspirador do movimento cubista que radicaliza a idéia de decomposição e degradação da imagem.

 

viaduto em L’estaque, Georges Braque, 1908

 

 

Ao chegar ao Brasil, o pintor judeu de origem lituana, Lasar Segall, ficou fascinado pela  luz e pelo colorido. Sua pintura sofreu, ainda sob influência cubista, uma mudança radical, ganhando uma vivacidade até então nele desconhecida.

Os quadros abaixo são testemunho da nossa beleza e da nossa dor. Apesar do colorido, a melancolia não se esconde. Livre dos ditames clássicos, estas imagens revelam o que a arte deve atingir: os nossos circuitos emocionais.

menino com lagartixas, Lasar Segall, 1924
Paisagem brasleira, Lasar Segall, 1913

2 thoughts on “Percepção e construção da realidade – parte 3: O cérebro cria a perspectiva a partir do desajuste da visão binocular, por Edward Ziff e Elisabete Castelon Konkiewitz

  • 07/08/2012 em 21:33
    Permalink

    Gostaria de parabenizar os coordenadores do blog, pois as matérias são interessantíssimas e deixam sempre o gosto de “quero mais”. Estarei acompanhando as publicações e recomendando.

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *