Trauma na infância e epigenética – resenha do artigo “Primate evidence on the late health effects of early-life adversity” por Lucas Shuiti

Gabriella Conti,Christopher Hansman, James J. Heckman, Matthew F. X. Novak, Angela Ruggiero, and Stephen J. Suomi; PNAS; 2012

http://www.pnas.org/content/109/23/8866.full

 

Escultura “Amor Materno” do escultor polonês João Zaco Paraná. A obra está situada junto à fonte do Jardim Botânico em Curitiba - PR e foi inaugurada em 1993.
Escultura “Amor Materno” do escultor polonês João Zaco Paraná. A obra está situada junto à fonte do Jardim Botânico em Curitiba – PR e foi inaugurada em 1993.

A relação entre as experiências vivenciadas nos primeiros anos de vida e sua influência em comportamentos na vida adulta é, hoje, indiscutível e torna-se objeto de muitos estudos atuais. As consequências mais frequentemente listadas desses traumas são a depressão, propensão à ansiedade, violência, vícios e outros distúrbios que vem sendo documentados desde a década de 60, quando o pioneiro Harry Harlow realizou seu famoso experimento com os macacos rhesus. No entanto, os estudos mais recentes procuram focar as consequências que vão além dos problemas comportamentais, mas transcendem outros aspectos fisiológicos como mudanças hormonais, disfunção imunológica e expressão gênica resultadas do trauma.

O estudo trazido pelo artigo em questão constou na análise de 231 macacos rhesus que, ao nascerem, foram aleatoriamente divididos em três grupos: criados pela mãe (MR), criados pelo grupo ou peer reared (PR) e criados pela mãe artificial ou peer-surrogate reared (SPR). Os filhotes do primeiro grupo permaneceram na presença da mãe biológica e foram criados dentro de uma comunidade com outros macacos. Já os outros dois grupos continham macacos que foram tirados da mãe e mantidos em uma enfermaria até o 37º dia de vida. Após esse período, o grupo PR foi alocado com macacos de idade próxima. Em contraste a isso, cada macaco do grupo SPR foi alocado individualmente em uma sela com uma mãe artificial, que era uma garrafa de água quente coberta com toalha de pelo, onde passava 22 horas por dia, sendo que as outras duas horas, passava com outros macacos também pertencentes ao grupo SPR. Após esse processo, os macacos foram analisados quanto a dois aspectos: exames físicos e observações comportamentais. No exame físico, foram registrados dados como: peso, altura, problemas corporais, feridas e doenças. E no exame comportamental, foram observados estereotipia, violência e o fator antissocial.

Os resultados obtidos confirmaram o contraste que já era esperado entre o primeiro grupo e os dois últimos negligenciados quanto aos cuidados maternos. O gráfico 1A mostra a frequência de doenças, que foi quase duas vezes maior se comparado o grupo criado pela mãe biológica e criado pela mãe artificial. Essa ligação entre cuidados maternos na infância, afastamento social de um grupo e doenças na vida adulta é um achado cujo significado prova mais uma vez que o funcionamento das células imunológicas e posterior aumento da mortalidade são amplamente afetados pelas experiências na infância.

 

Gráfico 1: A) Frequência de doença. B) Frequência de Estereotipia
Gráfico 1: A) Frequência de doença. B) Frequência de Estereotipia

 

Outros trabalhos vêm associando com sucesso as consequências dos traumas na infância à chamada epigenética, ou seja, as mudanças da atividade do gene sem que haja mutação ou mudança na sequência deles. Um desses trabalhos pode ser associado ao artigo em questão e mediu o grau de metilação do DNA (ver quadro 1) de células do córtex pré-frontal e de células T em macacos rhesus criados pela mãe biológica (MR) e criados por mãe artificial (SPR). Como esperado, foram encontradas diferenças na metilação de algumas áreas dos genes. O exemplo dessa diferença em células T é que há uma maior metilação em áreas do cromossomo 19 correspondentes a duas das três proteínas dedos de zinco cujo papel é agir na transcrição de fatores celulares. Outros traços de metilação no grupo SPR estão associados a transcrição, oxidação de ácidos graxos e resposta imune .

 

quadro 1

 

O próximo dado encontrado no trabalho foi o nível de cortisol aumentado no grupo com a mãe artificial, além de déficits no hormônio adenocorticotrópico e no metabolismo da serotonina, que está ligado ao comportamento agressivo e antissocial. A estereotipia (gráfico 1B), ou a repetição de movimentos sem finalidade, pode ser associada a outras doenças psiquiátricas como autismo e déficits cognitivos e de linguagem e também atinge significativamente mais membros dos grupos cuja atenção materna foi negligenciada.

Outro artigo acerca de epigenética faz uma relação entre os carinhos maternos (lamber e acariciar) em filhotes de ratos e o desenvolvimento do circuito hipotálamo-pituitária- adrenal que é responsável por responder a situações de stress. Filhotes que receberam bastante carinho tiveram a expressão do gene receptor de glicocorticoide (GR) aumentada (figura 1), respondendo mais moderadamente ao stress. O carinho materno é responsável pela desmetilação no exon 1₇ do gene promotor do receptor de glicocorticoide e essa desmetilação leva a uma maior expressão do gene.

Esquema da diferença na metilação do gene receptor GR: o rato que recebeu pouco cuidado materno possui o gene muito metilado, reduzindo, assim, sua expressão.
Figura 1: Esquema da diferença na metilação do gene receptor GR: o filhote que recebeu pouco cuidado materno possui o gene muito metilado, reduzindo, assim, sua expressão.

 

grafico c

 

O gráfico C ilustra a realidade das fêmeas quanto à perda de pelos, também chamada de alopecia. Nesse aspecto o grupo PR se sobressaiu, devido ao fato dessas fêmeas possuírem um maior nível de agressividade, tendo muitas vezes perdido seu pelo em brigas com outros macacos.

Outra observação apontada é que ao contrário das fêmeas do grupo SPR, as fêmeas PR não provocaram machucados a elas mesmas.

 

 

 

Esse estudo e diversos outros objetivam provar que as experiências na infância não são eventos isolados e podem provocar dano a longo prazo. Esse conhecimento é, certamente, uma ferramenta para evitar os efeitos deletérios que um trauma pode causar e tratar aquelas consequências que já se manifestaram. Sabe-se, hoje, que uma experiência traumática abrange muito mais que o domínio da psiquiatria, pois perpetua-se pela epigenetica podendo comprometer diversas outras células, entre elas,as células de defesa imunológica. Um maior número de pesquisas acerca do tema mostra-se necessário para esclarecer pontos que permanecem obscuros e desenvolver um melhor tratamento pra quem tão cedo já foi feito vítima.

 

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Lucas Shuiti Braga Motomia

Nascido em 14 de novembro de 1994, é natural de Dourados e graduando do curso de Medicina da UFGD – XIVa turma. Participa, também, como bolsista do projeto Jovens Talentos para a Ciência – Capes/CNPq.

 

 

 

Referências:

 

  • Hellstrom IC, Dhir SK, Diorio JC, Meaney MJ. Maternal licking regulates hippocampal glucocorticoid receptor transcription through a thyroid hormone-serotonin-NGFI-A signalling cascade. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci (2012)
  • Provençal N, Suderman MJ, Guillemin C, Massart R, Ruggiero A, Wang D, et al. The signature of maternal rearing in the methylome in rhesus macaque prefrontal cortex and T cells. J Neurosci (2012)

One thought on “Trauma na infância e epigenética – resenha do artigo “Primate evidence on the late health effects of early-life adversity” por Lucas Shuiti

  • 27/04/2014 em 19:32
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    Esse estudo tem mais de psicoimunomodulaçao, que com epigenetica, que é um estudo transgeracional onde fatos que ocorrem durante período de gametogênese influenciam patologias em futuras gerações.

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