Cinema e psicanálise: Todestrieb (Pulsão de morte) no filme Tudo sobre minha mãe de Pedro Almodóvar: por Jaume Aran
Tudo sobre minha mãe (1999) é um dos filmes mais importantes do renomado cineasta espanhol Pedro Almodóvar, que ganhou por ele o Oscar de melhor filme estrangeiro. O enredo do filme acaba sendo algo bizarro, mas o estilo realista da filmagem lhe confere certa vero- similitude. Essa obra aborda um variado leque de temas altamente complexos: relações materno-filiais, identidade sexual, uso de drogas, prostituição, embora muitos desses elementos constituam apenas o pano de fundo para o desenrolar da trama.
A relação entre as artes e a psicanálise vem de longa data, provavelmente porque ambas, de alguma forma, mergulham nas profundezas da psique e possibilitam algum tipo de reflexão sobre o comportamento humano. Apesar da notória frieza que Freud mostrou a respeito da sétima arte, a relação entre ela e a psicanálise tem produzido frutos profusamente, embora nem sempre de boa qualidade. Considerando tudo isso, vamos tentar apresentar uma leitura psicanalítica do filme de Almodóvar.
Com o intuito de propor uma reflexão mais focada, a presente resenha se limita a analisar apenas um dos aspectos do filme passíveis de serem analisados sob uma perspectiva psicanalítica, particularmente as manifestações da pulsão de morte, que são um elemento constituinte da narração no filme analisado.
Sinopse do filme
O filme começa apresentando Manuela, a protagonista, enfermeira que trabalha como coordenadora do serviço de doação de órgãos de um hospital de Madrid. Aparentemente viúva, ela tem um filho de 17 anos, chamado Esteban, que gosta de escrever. Na noite do aniversario de Esteban, eles assistem a uma peça de teatro –Um bonde chamado desejo- e quando esta acaba, por causa da insistência do garoto, decidem esperar embaixo de chuva a saída da atriz principal, chamada Huma, para pedir-lhe um autógrafo. Como a chuva persiste, ao sair do teatro, Huma entra rapidamente em um taxi e não dá atenção ao jovem. Esteban, inconformado, corre atrás do veículo e é atropelado. O acidente é fatídico e ele morre no hospital, onde sua mãe, dilacerada pela dor, acaba assinando os documentos para que o coração de Esteban possa ser transplantado. Usando informação reservada para averiguar o endereço do receptor, Manuela viaja para vê-lo à distancia.
Depois disso, Manuela, viaja a Barcelona para reencontrar o pai do seu filho. Assim descobrimos que ele, na verdade, está vivo, chama-se também Esteban, é travesti e costumava exercer a prostituição com outra travesti conhecida como Agrado. A viagem inicialmente é infrutífera, pois Lola (a nova identidade de Esteban) tinha roubado a poupança de Agrado e fugido para a Argentina. Contudo, Manuela fica em Barcelona e, por uma série de casualidades, começa a trabalhar como assistente de Huma, que está apresentando na cidade a mesma peça- Um bonde chamado desejo, e conhece uma jovem freira, dedicada a trabalhos sociais e que ficou grávida de Lola. Manuela acolhe a freira, chamada Rosa, no seu apartamento, pois esta não quer revelar sua gravidez para sua comunidade religiosa, nem para os seus pais (a mãe não aprova seu trabalho com marginalizados e o pai apresenta sintomas de algum tipo de demência senil). Posteriormente, elas ficam sabendo que Lola contagiou a irmã Rosa com HIV. Seu filho, que também recebe o nome de Esteban, nasce soropositivo e sua mãe morre dando a luz.
Finalmente, Lola, com pouco tempo de vida por causa da AIDS, retorna a Barcelona e consegue conhecer seu filho mais novo, que acaba ficando a cargo de Manuela. O filme termina com a afirmação de que o corpo de Esteban, ainda criança, de alguma forma venceu o vírus.
A pulsão de morte na psicanálise freudiana

A pulsão de morte é um dos conceitos mais polêmicos da psicanálise, mesmo entre os próprios psicanalistas. Ele aparece em 1920 em Além do principio do prazer e é tido por muitos autores como uma grande inovação teórica de Freud. Contudo, uma leitura mais cuidadosa nos permite descobrir precedentes da Todestrieb já no Projeto de uma psicologia de 1895. Nesta obra, publicada anos depois da morte de Freud, o autor austríaco pretende elaborar uma explicação do funcionamento psíquico em termos neurobiológicos.
Segundo escreve Freud no Projeto, o mecanismo básico de funcionamento do sistema nervoso seria o princípio da inércia, que consistiria na tendência a se libertar de toda quantidade de excitação. A forma de o organismo descarregar essas quantidades de excitação seria a via motora; assim, por exemplo, se um sujeito tocasse um copo muito gelado, poderia mover a mão para longe do copo para evitar a sensação de frio. Estímulos endógenos, todavia, não poderiam ser descarregados dessa forma. Por exemplo, a sensação de fome não seria aliviada com o movimento. Desta forma, como apontam Caropreso e Simanke no seu livro Entre o corpo e a consciência de 2011, surgiria o principio de constância, a tendência a manter a quantidade de atividade neuronal constante no nível mínimo indispensável para levar a cabo as ações necessárias para se libertar desses estímulos endógenos. Assim, no caso de o organismo sentir fome, ele deveria manter uma quantidade suficiente de excitação que lhe permitisse, por exemplo, preparar alimento. Isso permitiria que os estímulos endógenos perturbadores fossem eliminados. Portanto podemos considerar que o principio de constância agiria na mesma direção que o principio de inércia.
No livro supracitado, Caropreso e Simanke explicam que as sensações de prazer e desprazer corresponderiam às variações da intensidade de excitação do organismo. Existiria um nível de excitação no qual surgiriam as percepções sensoriais, acima do qual o aumento de excitação seria percebido como desprazer/sofrimento/dor e seu rebaixamento seria percebido como prazeroso.
No Projeto se apresenta o conceito de facilitação, fenômeno pelo qual a resistência de condução nas conexões entre neurônios diminuiria em função do fluxo de quantidade que a atravessasse. Esse conceito é importante porque, de acordo com a teoria psicanalítica, no processo primário _aquele que não sofre nenhuma inibição ou modulação, regido pelo principio de inércia_, toda excitação seguiria a via neuronal mais facilitada, mesmo que essa facilitação tivesse acontecido por causa de estímulos não prazerosos.
Para tentar clarificar a exposição, devemos considerar que Freud se expressa, no Projeto, usando termos neurológicos (como neurônios e afins) usando o conhecimento biomédico da época. É somente a partir de 1900 que ele começa a usar um vocabulário mais “psicológico”, embora, contra o que muitos pensam, isso não signifique que o autor tenha abandonado as hipóteses neurobiológicas subjacentes. Assim, quando nos referimos às ideias freudianas do Projeto, embora a terminologia e as concepções não correspondam às do conhecimento neurocientífico atual, as mesmas devem ser entendidas como uma tentativa de explicação neurobiológica dos processos mentais. Também, na obra freudiana posterior, o uso de construtos conceituais como “aparelho psíquico” não deve ser visto como reflexo de um dualismo do tipo cartesiano, no qual as realidades psíquicas teriam uma natureza essencialmente diferente da realidade corporal. Ao contrario, embora Freud tenha se distinguido por se opor a teses localizacionistas, sempre defendeu que os processos psíquicos seriam fundamentalmente processos neurobiológicos. É neste marco conceitual que devemos situar expressões como “processo primário”. Segundo Laplanche e Pontalis, Freud postula dois modos opostos de funcionamento do aparelho psíquico: o processo primário e o secundário. Do ponto de vista dinâmico, o processo primário se caracterizaria pelo fato de que nele a energia psíquica poderia circular livremente, passando sem entraves de uma representação a outra. Já no processo secundário, a energia psíquica estaria de algum modo retida, não circulando livremente e permanecendo investida nas representações mentais de forma mais estável.

A dor, seja ela física ou emocional, segundo a teoria exposta no Projeto, como comentam Caropreso e Simanke, consistiria na irrupção de grandes quantidades no sistema responsável pela memória. Essa dor produziria três efeitos: a) um grande aumento excitação no sistema de memória, b) uma inclinação a realizar alguma ação para eliminar essa excitação e c) uma facilitação entre os caminhos de eliminação e a representação do objeto que provocou a dor.
A partir de 1900, Freud considera que o processo primário seria regido pelo principio do prazer (chamado de principio de desprazer, num primeiro momento), que procura a satisfação imediata de desejos e o processo secundário seria regido pelo principio de realidade, que nos permitiria adiar temporariamente algumas satisfações para cumprir com exigências sociais ou para conseguir satisfações maiores no futuro.
Em Além do principio do prazer (1920), Freud postula que existiria um funcionamento psíquico mais básico que o principio do prazer, o qual explicaria comportamentos não explicados por este (comportamentos que produzem apenas desprazer, como os pesadelos). A Todestrieb, ou pulsão de morte, consistiria em uma tendência a voltar a um estado anterior, isto é, a um estado de menor excitação, buscando se libertar de toda excitação advinda ao aparelho psíquico, como já havia sido inicialmente proposto no Projeto. Como o estado anterior de todo organismo é a não existência, esse mecanismo foi nomeado pulsão de morte e se manifestaria na compulsão à repetição.
A pulsão de morte em Tudo sobre minha mãe

Como foi comentado acima, a principal manifestação da pulsão de morte consiste no mecanismo inconsciente da compulsão à repetição. Em Tudo sobre minha mãe encontramos vários comportamentos que ilustram essa ideia.
O filme se estrutura narrativamente pelo retorno de Manuela a Barcelona, cidade onde havia em sua juventude se relacionado com Esteban/Lola e ficado grávida dele. Quando seu filho morre em acidente, Manuela sente a necessidade de voltar a Barcelona para reencontrar Esteban e melhor concluir (ou elaborar) essa parte da sua vida. O filho de Manuela tem o mesmo nome que seu pai, (Quem sabe uma tentativa inconsciente de Manuela de manter próxima a recordação do seu amor?). Outro comportamento de compulsão à repetição é o fato de que Esteban/Lola, que não chegou conhecer seu primeiro filho, engravida a irmã Rosa e também, sem ter conhecimento desta segunda gravidez, viaja para a Argentina. Seu segundo filho naturalmente também é chamado Esteban, como o primeiro. Já gravemente doente pela AIDS, Lola retorna a Barcelona e conhece seu segundo filho, mas morre pouco tempo depois, quando o menino ainda é bebe, de forma que seu segundo filho também não conseguirá verdadeiramente conhecê-lo, uma carência da qual o filho de Manuela reclamava no inicio do filme.
No comportamento da protagonista, Manuela, a compulsão à repetição se manifesta de forma eminente. Não apenas ela volta a Barcelona para reencontrar seu antigo amor, Esteban, como também acaba cuidando, de novo sozinha, do segundo filho deste. Outros aspectos de menor importância do filme, também apresentam o comportamento de repetição. Por exemplo, o pai da irmã Rosa, que parece sofrer de algum tipo de demência senil, apresenta um funcionamento mental muito prejudicado. Ele deve passear acompanhado do seu cachorro, porque não consegue voltar à casa sozinho, não reconhece sua própria filha, etc. Toda vez que ele encontra alguma moça, pergunta-lhe: “Qual é seu nome? Que altura você tem?”. Esse comportamento repetitivo, segundo a teoria psicanalítica, seria fruto de idéias obsessivas, que poderiam ser inibidas ou elaboradas se o sujeito tivesse sua capacidade mental desimpedida, mas, por causa da doença, o processo secundário não conseguiria se impor e os processos mentais mais básicos teriam via livre, levando o ancião a repetir indefinidamente as mesmas perguntas.
Manuela, enquanto enfermeira, para preparar a equipe do hospital onde atua para lidar com os familiares de pessoas que morreram e podem doar órgãos, faz jogos de dramatização, nos quais desempenha o papel da mãe do paciente. Um pouco mais tarde, ela se vê neste papel na vida real, tendo que decidir se doa ou não o coração do seu filho. Neste caso, não se trata de uma repetição fruto da psique da protagonista, mas ilustra o uso do recurso de repetição como elemento narrativo e estrutural neste filme de Almodóvar, que tende a destacar a dimensão trágica de determinados eventos na história. Fala-se de uma história trágica quando os protagonistas não conseguem escapar a um destino que de algum modo foi prenunciado. A conhecida história de Édipo, neste sentido, seria uma tragédia. A história de Manuela, de certa forma, também o é. A compulsão à repetição confere um sentido trágico à existência, porque o sujeito não consegue escapar de vivenciar ciclicamente determinado tipo de situação. Porém, nada de sobrenatural há nisso. Trata-se, na verdade, de padrões inconscientes de comportamento que respondem à tentativa do aparelho psíquico de se libertar de quantidades de estímulo.
Relacionando a teoria freudiana do aparelho psíquico com os seus postulados neurológicos do Projeto, caberia pensar que as ações necessárias para se libertar dessas quantidades de estímulo responderiam, de alguma forma, ao que Freud denominou no Projeto como vias neuronais facilitadas?
Outros aspectos do filme poderiam ainda ser considerados como relacionados à pulsão de morte como, por exemplo, a relação tensa entre Rosa e sua mãe ou a briga na qual Agrado está envolvida, quando é encontrada por Manuela. A briga é com um cliente e Agrado parece encará-la como um fato corriqueiro na sua atividade de prostituta. Essa agressividade seria um elemento próprio da pulsão de morte, que, tomada como conceito oposto às pulsões de vida, tenderia à desagregação e à destruição do organismo. No entanto, a partir de uma consideração global da obra freudiana, podemos considerar que essa antítese teria sido mais um construto didático do que algo diferençável na realidade, onde somente existiria uma única pulsão com tendências ora amorosas/unificadoras, ora destrutivas ou niilistas.
É claro que o presente texto não esgota as possibilidades de análise de um filme tão rico e complexo como Tudo sobre minha mãe, nem apresenta a teoria freudiana sobre a pulsão de morte com o aprofundamento que o assunto requer. Que sirva, então, como convite para assistir ao filme, ou para apreciá-lo com um novo olhar e também para entrar em contato com a obra desse velho neurologista e fundador da psicanálise chamado Sigmund Freud.
Jaume Ferran ARAN CEBRIA
Nasceu na Espanha em 1978. Cursa o quarto ano de graduação em psicologia na UFGD. Realizou sua iniciação científica pesquisando a gênese das psicopatologias sob a luz da teoria freudiana e atualmente está engajado em um projeto de pesquisa sobre percepção temporal. Fala fluentemente catalão (nativo), espanhol, inglês e português. Lê também francês e latim. Atualmente ensina inglês e espanhol em escolas de línguas.
Me chamo Roberto e Seu site é muito bom, gostei das
postagens e já salvei aqui nos Favoritos. Vocês aceitam
parcerias para troca de Backlinks, ou banners, para
melhorar as suas visitas reais? Se tiver interesse em crescer
o número de visitantes com Tráfego Orgânico, entre no
meu site tambem (TrafegoParaSite.Com.Br) e Fale
Conosco.
Muito bom!
Mas, que tal uma outra visão sobre a pulsão de morte?
http://velloso.comunidades.net/index.php