Breve Panorama das Diferentes Conceituações e Abordagens da Inteligência- por Elisabete Castelon Konkiewitz

O criador do teste de QI, Alfred Binet, entendia a inteligência como um complexo mutável de diversas funções, modeláveis pelo ambiente e por variáveis de acordo com o grau de desenvolvimento do indivíduo (Binet & Simon, 1916). Este conceito é deveras amplo e se harmoniza com conceitos mais recentes, como o de neuroplasticidade, o de interação gene-ambiente e o de diversidade individual das funções intelectivas, não apenas quantitativa, mas também qualitativa. Juntamente com Theodore Simon, Alfred Binet desenvolveu a primeira Escala Métrica de Inteligência, publicada em 1905, a qual objetivava mensurar através do cociente de inteligência (QI) o desenvolvimento cognitivo das crianças de acordo com a sua idade cronológica, introduzindo assim o conceito de idade mental. O QI foi então criado como um índice numérico resultante da divisão da idade mental pela idade cronológica. Além disso, havia também interesse em caracterizar o perfil individual de inteligência de cada criança.

Na mesma época, o psicólogo inglês, Charles Spearman, propunha a existência de um fator geral ou g, designado como inteligência geral, subjacente a toda atividade intelectiva (Spearman, 1904). Este fator seria universal, independente do momento histórico, do grupo estudado, da sua localização geográfica e do seu contexto cultural, sendo um marcador da capacidade energética mental inata. Sob influência deste conceito, desenvolveram-se vários testes psicométricos, como, por exemplo, o conhecido e muito utilizado Teste de Matrizes Progressivas de Raven (publicado em 1938), que objetiva medir a capacidade mental para estabelecer comparações, raciocinar por analogia e desenvolver um método lógico de pensamento, independentemente da nacionalidade, da aquisição prévia de informação e do nível educacional (Raven, 1990).
Em 1941 o conceito de inteligência geral foi ampliado pela teoria da inteligência de Cattell-Horn, que propôs a divisão das habilidades mentais, ou do fator geral g entre inteligência fluida (gF) e inteligência cristalizada (gC) (Cattell, 1941). A primeira corresponderia à capacidade de pensar e agir rapidamente, resolver novos problemas, lidar eficazmente com situações desconhecidas, reconhecer padrões e formar memórias de curto prazo, ou, em outras palavras, ao nível de complexidade das relações que um indivíduo consegue detectar e aplicar, quando não pode recorrer a respostas anteriormente arquivadas na memória. Por outro lado, a inteligência cristalizada proviria do aprendizado e se refletiria nos conhecimentos gerais, no uso da linguagem, no uso da matemática e numa ampla variedade de habilidades adquiridas. A inteligência cristalizada dependeria da inteligência fluida, que representaria o potencial cognitivo inato, mas também da personalidade, da motivação e das oportunidades educacionais (Cattell, 1971).

Em 1939, o psicólogo David Wechsler publica a Wechsler-Bellevue Intelligence Scale, destinada à avaliação da inteligência em adolescentes e adultos (Wechsler, 1939). Suas revisões deram origem a diferentes instrumentos atuais que levam o seu nome. Além da preocupação em desenvolver um instrumento capaz de mensurar a inteligência, Wechsler discutiu alguns dos seus aspectos conceituais. Tendo sido aluno de Spearman, concluiu que a teoria da inteligência geral era por demais estreita. Ao contrário de seu mestre, Wechsler acreditava que a inteligência não se refletia apenas no fator g, como expressão do potencial intelectivo, mas seria também a capacidade de utilizar este potencial e de aplicá-lo em situações contextuais, agindo com propósito (Wechsler, 1944).
Wechsler também observou que fatores não-intelectivos tinham impacto sobre o comportamento inteligente. Aspectos como a motivação, a persistência, a consciência dos objetivos pessoais, o planejamento, a curiosidade, o auto-controle, traços de personalidade, atitudes, interesses e valores pessoais seriam parte do funcionamento cognitivo,sendo distintos, porém funcionalmente inseparáveis da inteligência (Wechsler, 1940).

Em 1985, o psicólogo americano Robert Sternberg propõe a Teoria Triárquica da Inteligência Humana, que seria uma concepção mais ampla e integrativa da mesma (Sternberg, 1985). Ele critica o conceito do fator g e os testes psicométricos a ele associados, por estes avaliarem competências acadêmicas, como o pensamento analítico e a memória, e negligenciarem outros aspectos importantes na adaptação ao ambiente fora da escola, como a capacidade para lidar eficazmente com situações novas, com tarefas de ordem prática, com as relações interpessoais ou com a gestão dos recursos pessoais. Ressalta que a própria situação do teste e as ferramentas nele utilizadas (papel, caneta, símbolos gráficos) já seriam em si uma situação artificial e acadêmica, que poderia enviesar os resultados em determinadas populações.
A Teoria Triárquica, ao mesmo tempo em que contempla os componentes cognitivos internos associados ao processamento de informações e à aquisição de conhecimento, formula que a inteligência resulta da interação dinâmica entre estes componentes e as variáveis exigências do ambiente sobre o indivíduo. Em 1996, ao introduzir o conceito de “Inteligência Funcional”, Sternberg reforça o caráter cultural do comportamento inteligente, concebendo-o como a capacidade de adaptação ao meio, envolvendo uma resposta individual de compensação das limitações e ativação das potencialidades (Sternberg, 1996).
Em suma, pode-se dizer que, de acordo com este modelo, a inteligência é (a) modular, pois envolve diversos componentes de processamento cognitivo da informação, não podendo ser representada por uma única variável; (b) é idiossincrática, pois os perfis de limitações e potencialidades variam interindividualmente, de forma que não pode ser normatizada e avaliada por parâmetros estatísticos; e (c) é dinâmica e modificável pelo ambiente e pela experiência, decorrendo de uma interação complexa entre o indivíduo e o meio, ao longo do tempo.

Em 1983, o psicólogo americano Howard Gardner publica o livro Estruturas da Mente, no qual descreve sete dimensões da inteligência: inteligência visual/espacial, inteligência musical, inteligência verbal/linguística, inteligência lógica/matemática, inteligência interpessoal, inteligência intrapessoal e inteligência corporal/cinestética. (Gardner, 1983). Seu postulado é de que a mente seria melhor concebida como um conjunto de faculdades distintas e relativamente separadas e não como uma unidade de desempenho que realiza todas as funções, independentemente do contexto e do conteúdo. Sendo assim, Gardner conceitua a inteligência como um “potencial biopsicológico para processar informações, que pode ser ativado num cenário cultural para solucionar problemas, ou criar produtos que sejam valorizados numa cultura” (Gardner, 2001, p.47). Segundo ele, testes que acessam o fator g estariam avaliando as inteligências lingüística e lógico-matemática, mas não proveriam informações suficientes sobre as potencialidades individuais. Gardner defende a avaliação informal com a observação da pessoa no seu ambiente cotidiano, em situações reais, manipulando objetos concretos, de preferência em variados contextos.

A Teoria das Inteligências Múltiplas tem em comum com a Teoria Triárquica da Inteligência Humana a crítica ao fator g e aos testes psicométricos pelo seu reducionismo; a formulação da natureza modular da cognição, contemplando domínios de funcionamento relativamente diferenciados; o enfoque dado ao caráter individual e qualitativo da inteligência com a valorização da compreensão de constelações individuais em lugar de dados quantitativos; a importância atribuída às interações dinâmicas com o ambiente; a contemplação de diferenças desenvolvimentais; e o reconhecimento da plasticidade e mutabilidade da inteligência.
No entanto, o que mais diferencia a proposta de Gardner foi a ruptura que promoveu ao elevar determinadas funções ao status de inteligência, como, por exemplo, habilidades corporais, viso-espaciais e musicais. Gardner deixa explícito que não se trata de talentos, mas de inteligências, que merecem a mesma valorização que as atividades de raciocínio lógico-dedutivo e de abstração. Este novo enquadramento se baseia em estudos de pacientes com lesão cerebral, de pessoas com síndrome de savant, em dados da psicologia evolutiva, da psicologia do desenvolvimento, da análise lógica e da antropologia. Gardner (1999) estabelece critérios para que uma determinada habilidade seja reconhecida como inteligência:
- Isolamento potencial a partir de lesão cerebral: observação de que lesões cerebrais podem afetar isoladamente uma determinada inteligência, sem interferir com as outras, revelando seu isolamento e independência;
- História e plausibilidade evolutiva: dados da psicologia evolutiva devem apontar que a habilidade em questão foi importante na adaptação da espécie humana e por isso foi selecionada;
- Operações-chave identificáveis: isolamento de operações mentais nucleares que subjazem a habilidade, supostamente mediadas por mecanismos neuronais específicos e desencadeadas por tipos de informação interna ou externa relevantes, as quais, por operarem em conjunto, sugerem a identificação de uma forma de inteligência. Por exemplo, no caso da linguagem, as operações envolvem decodificação fonética, atribuição semântica e domínio da sintaxe;
- Possibilidade de codificação num sistema simbólico particular: elaboração de sistemas simbólicos com significado cultural que permitem que as transações de informação da habilidade em questão sejam feitas de maneira sistemática, exata e eficaz (linguagem falada e escrita, símbolos matemáticos, gráficos, pauta musical etc.);
- Trajetória de desenvolvimento específica: evidência de um padrão de desenvolvimento de competências em direção a um nível de desempenho (end state), ou seja, para ser considerada inteligência, a habilidade necessitaria de um processo de aquisição;
- Existência de idiots savants ou indivíduos prodígios: identificação de indivíduos com desempenho excepcional na habilidade isolada, apresentando ao mesmo tempo desempenho normal, ou mesmo déficits em outras áreas; por exemplo, pessoas com desordens do espectro autista que apresentam capacidade extraordinária para o cálculo matemático, ou para a música;
- Evidência experimental da possibilidade de execução simultânea dos processamentos mentais associados a esta habilidade e de outros não associados a ela– verificação experimental de que uma atividade não interfere com a outra;
- Evidência psicométrica: proveniente de estudos correlacionais que demonstram relativa independência entre áreas de funcionamento como, por exemplo, entre as habilidades linguística, espacial e social.

Apesar da adoção dos critérios acima, a Teoria das Inteligências Múltiplas ainda é bastante controversa e criticada por apresentar bases empíricas insuficientes. Por exemplo, o próprio Robert Sternberg, que também defende uma visão mais ampla e plástica da inteligência, acredita que as inteligências definidas por Gardner seriam mais bem entendidas como talentos (Sternberg, 1985). Por outro lado, muitos educadores abraçaram a proposta de Gardner, por encontrarem nela um construto que visa ajudar a promover as potencialidades das pessoas ao invés de classificá-las em uma hierarquia cognitiva.
Outra concepção integrativa da inteligência é representada pela Teoria Bioecológica do psicólogo americano Stephen Ceci (Ceci, 1996), a qual se destaca pelo enfoque dado às interações entre o indivíduo e suas potencialidades biologicamente determinadas e o ambiente na constituição das diversas formas de inteligência durante o desenvolvimento, entendendo que estas interações são recíprocas e não aleatórias. O indivíduo seleciona, de acordo com as suas características, os estímulos do ambiente, expondo-se de forma diferenciada a oportunidades e experiências, as quais, por sua vez, moldam as suas competências. Sendo assim, o modelo ecológico assimila tanto aspectos da psicologia do desenvolvimento, quanto aspectos da neurobiologia.
Elisabete Castelon Konkiewitz- Graduada em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) em 1993 e doutora em Neurologia pela Technische Universität München (Alemanha) em 2002. Título de Especialista em Psiquiatria pela Associação Médica Brasileira e Associação Brasileira de Psiquiatria. Título de especialista em Neurologia pela Associação Médica Brasileira e Academia Brasileira de Neurologia. Desde 2008 professora adjunta da Faculdade de Ciências da Saúde (curso de Medicina) na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Foi docente na Universidade Estadual de São Paulo (UNESP) e na Universidade de Marília (UNIMAR). Docente em cursos de pós-graduação nas áreas de Saúde e Educação. Tem experiência nas áreas de transtornos de aprendizado, neurocognição,aspectos neuropsiquiátricos na infecção pelo HIV.
Referências:
Binet, A., & Simon, T. (1916). The development of intelligence in children (The Binet-Simon Scale). In: E.S. Kite, translator. Training School. Vineland, NJ: Suzanne Heisler.
Cattell, R.B. (1941). Some theoretical issues in adult intelligence testing. Psychological Bulletin, 38, 592. |
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Raven, J. C. (1990). Manual for Raven’s Progressive Matrices and Vocabulary Scales. Research supplement no. 3 American national and school district normative and validity studies set in an international context together with a review of the use of the RPM in neuropsychological assessment (2nd ed.). Oxford, UK: Oxford Psychologists Press.
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