A CRIANÇA, A FAMÍLIA, A ESCOLA E A TRANSIÇÃO PARA O ENSINO FUNDAMENTAL- por Edna Maria Marturano.
A CRIANÇA, A FAMÍLIA, A ESCOLA E A TRANSIÇÃO PARA O ENSINO FUNDAMENTAL- por Edna Maria Marturano. In: APRENDIZAGEM, COMPORTAMENTO E EMOÇÕES NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR. Organização: Elisabete Castelon Konkiewitz. Editora UFGD, Dourados, 2013.
Roberto tem sete anos incompletos e frequenta o 1º ano do ensino fundamental. Ele não teve acesso à educação infantil e agora encontra alguma dificuldade para acompanhar a classe. No recreio, não sabe como lidar com as provocações dos colegas maiores e não se anima a pedir ajuda dos adultos, porque alguns gritam muito com as crianças. Hoje foi um dia difícil. A professora mandou bilhete para seus pais porque de novo ele não completou as tarefas na escola. Sua mãe ficou zangada, brigou com ele e ameaçou castigá-lo da próxima vez. Roberto não gosta mais da escola.
O foco deste capítulo são os desafios do 1º ano do ensino fundamental. Estudiosos do desenvolvimento infantil têm destacado a importância das primeiras experiências nesse nível de ensino, por suas consequências na vida da criança. Diversas pesquisas longitudinais demonstraram o impacto das experiências escolares iniciais sobre a trajetória futura da criança na escola. O desempenho alcançado por ela e a qualidade dos seus relacionamentos com os colegas e o professor nesse momento predizem seu progresso escolar nos anos subsequentes, tanto em termos de aprendizagem como de ajustamento1,2,3,4.
Tratamos aqui o ingresso no ensino fundamental do ponto de vista do seu significado para o desenvolvimento. A pergunta que nos instiga pode ser formulada nos seguintes termos: Quais os ingredientes que tornam esse momento tão particular, tão importante na vida das crianças? TRANSIÇÃO é uma palavra chave na busca por respostas a essa questão, pois no momento em que a criança ingressa na 1ª série há uma convergência de mudanças em sua vida, caracterizando uma tríplice transição.
Transição entre estágios do desenvolvimento cognitivo
A idade dos 5 aos 8 anos tem sido reconhecida como uma transição no desenvolvimento, com mudanças qualitativas que delimitam uma nova etapa. Do ponto de vista cognitivo, a criança realiza a transição entre o estágio que Piaget denominou pré-operacional e o estágio operacional concreto, que propicia a reversibilidade e a descentração do pensamento.
Até então, no decorrer do estágio pré-operatório, a criança dispunha de uma inteligência pré-lógica e, para adaptar-se às novas situações, valia-se do mecanismo da intuição. Esse mecanismo consiste na simples interiorização das percepções e dos movimentos, sob a forma de imagens representativas e de experiências mentais, que prolongam os esquemas sensórios-motores. Essas estruturas de representações internas da realidade são rígidas e irreversíveis. Desse modo, no estágio pré-operatório, o pensamento está sujeito à confusão entre aparência e realidade, só é capaz de focalizar um aspecto da realidade de cada vez e é egocêntrico, no sentido de que a criança não consegue assumir o ponto de vista do outro e, consequentemente, acredita que todos pensam como ela.
No período de desenvolvimento, que coincide com a passagem da educação infantil para o ensino fundamental, a criança está justamente transitando entre o estágio pré-operatório e o estágio operacional concreto; gradualmente, as estruturas intuitivas, rígidas e irreversíveis tornam-se móveis, mais flexíveis, descentradas e reversíveis.
Simplificando, as crianças passam a pensar sobre os objetos a partir de mais de uma perspectiva ou podem manter em mente uma característica de uma situação, comparando-a com outra. A criança se torna mais e mais capaz de fazer a distinção entre aparência e realidade, considerar simultaneamente vários aspectos de um problema, desenvolver uma teoria da mente e perceber o ponto de vista do outro.
As mudanças cognitivas parecem ter um substrato biológico em mudanças observadas no sistema nervoso central. O padrão de mudanças cerebrais entre as idades de cinco e sete anos permite que os lobos frontais coordenem as atividades dos outros centros cerebrais de uma maneira qualitativamente mais complexa, facultando à criança controlar sua atenção, fazer planos explícitos e se envolver em autorreflexão5.
Esse desenvolvimento é também grandemente estimulado nas interações com os companheiros. As interações entre as crianças oportunizam o confronto entre as hipóteses que cada uma tem construído para explicar a realidade; os confrontos em diferentes situações, por sua vez, possibilitam a descoberta dos diferentes pontos de vista e a superação do pensamento egocêntrico.
As mudanças qualitativas que se operam entre os cinco e os oito anos não ocorrem abruptamente, mas são graduais. Assim, em uma classe de 1ª série, vamos encontrar crianças em diferentes fases dessa construção, e a fase da transição em que uma criança se encontra nesse momento vai influenciar o modo como ela interpreta os acontecimentos e as experiências vivenciadas na escola, sua apreensão das regras e normas do novo contexto, e assim por diante. Por outro lado, a convivência diária, na escola, entre crianças que se encontram em diferentes fases do processo é uma condição altamente favorável que acelera as mudanças desenvolvimentais em perspectiva.
Transição psicossocial
O ingresso no ensino fundamental pode ser considerado como um sinalizador cultural da transição entre dois estágios de construção da identidade, de acordo com a teoria do desenvolvimento psicossocial de Erikson6. Podemos avaliar seu significado por meio do conceito de tarefa de desenvolvimento.
A noção corrente de tarefa de desenvolvimento implica em um conjunto de critérios, alguns universais, outros específicos de determinada cultura ou momento histórico, através dos quais se avalia a competência do indivíduo para lidar com os desafios psicossociais típicos de cada etapa do desenvolvimento7. Pressupõe-se que o grau de sucesso na resolução das tarefas em uma dada etapa afeta a competência em etapas posteriores.
Na perspectiva do desenvolvimento humano como um processo dinâmico de trocas contínuas entre indivíduo e ambiente, o conceito tem caráter co-construtivo e transacional. Se por um lado o indivíduo participa ativamente do processo de construção das competências necessárias ao cumprimento das tarefas que lhe são propostas pelo meio, admite-se, por outro lado, que é nas transações dentro dos diversos sistemas sociais que as tarefas são enfrentadas, com maior ou menor chance de sucesso. O meio social não só define as tarefas e estabelece critérios de competência, mas também deve prover apoio para seu cumprimento8.
Em resumo, o conceito de tarefa de desenvolvimento se refere às conquistas desenvolvimentais de uma etapa, que capacitam a pessoa em desenvolvimento para lidar com os desafios da etapa subsequente no curso de sua vida.
Na passagem para a meninice, a criança traz das fases anteriores, em maior ou menor grau, as aquisições que vão alicerçar as novas conquistas: autorregulação emocional, senso de iniciativa, empatia. As principais tarefas de desenvolvimento que então se apresentam como desafios a serem enfrentados pelo escolar, incluem o desempenho acadêmico, o ajustamento ao ambiente escolar, a capacidade de se dar bem com os companheiros e a adesão às regras da sociedade para comportamento moral e conduta pró-social7. Dentre essas tarefas, sair-se bem na escola parece ser crucial para o desenvolvimento do senso de produtividade, isto é, o grau em que o indivíduo se considera capaz de desempenhar funções produtivas valorizadas pela sua cultura6,8,9.
Desse modo, o conceito de tarefa de desenvolvimento põe em relevo a centralidade da experiência escolar no processo de construção da identidade durante os anos da meninice. Consequentemente, a meninice é vista como um período sensível a influências relacionadas à escola: se o sucesso escolar pode engendrar mecanismos de proteção ao desenvolvimento, seu oposto é uma condição de risco, que pode tornar a criança vulnerável frente a futuros desafios.
O ingresso na 1ª série é, então, o marco inicial de um novo estágio psicossocial, de um período particularmente sensível a influências que afetam o senso de produtividade. Não é, pois, de se estranhar que a experiência escolar inicial possa repercutir no progresso escolar ao longo de todo o ensino fundamental, como demonstram as pesquisas. Com efeito, essa experiência pode contribuir para diferentes trajetórias de desenvolvimento, conforme seu impacto no senso de competência e produtividade.
Transição ecológica

No sistema de ensino público brasileiro, a 1ª série pode ser entendida em si mesma como uma transição ecológica, no sentido que lhe dá Bronfenbrenner, autor da teoria bioecológica do desenvolvimento.
Bronfenbrenner10 define a ecologia do desenvolvimento humano como “estudo científico da acomodação progressiva, mútua, entre um ser humano ativo, em desenvolvimento, e as propriedades mutantes dos ambientes imediatos em que a pessoa em desenvolvimento vive, conforme esse processo é afetado pelas relações entre esses ambientes, e pelos contextos mais amplos em que os ambientes estão inseridos” (p.18).
Segundo o modelo bioecológico por ele proposto, o desenvolvimento humano tem lugar por meio de “processos de interação recíproca e cada vez mais complexa entre um organismo humano biopsicológico ativo, evolvente, e as pessoas, objetos e símbolos em seu ambiente externo imediato” (p.994)11. Para serem efetivas, tais interações devem ocorrer com regularidade, ao longo de períodos extensos de tempo. Essas formas duradouras de interação são identificadas como processos proximais. Os processos proximais constituem, na abordagem ecológica, os mecanismos primários do desenvolvimento. Seu poder para influenciar o desenvolvimento depende de características de três outros componentes do processo: a pessoa, o contexto e o tempo.
Sendo a pessoa em desenvolvimento um ser ativo, suas disposições seletivas para engajar-se em interações com outras pessoas, objetos e símbolos do ambiente imediato têm grande influência nos processos proximais. Também os recursos que ela já desenvolveu vão contribuir para a maior ou menor efetividade das interações nos diferentes contextos dos quais ela participa. Os microssistemas são aqueles ambientes onde a pessoa em desenvolvimento tem experiências diretas. Aquilo que acontece em um microssistema pode afetar a vida da criança em outro microssistema. A inter-relação e as influências recíprocas entre dois ou mais ambientes nos quais a criança em desenvolvimento participa ativamente compõem o mesossistema.
A entrada da criança em um novo microssistema, ampliando o mesossistema, é denominada como transição ecológica: “Ocorre uma transição ecológica sempre que a posição da pessoa no meio ambiente ecológico é alterada em resultado de uma mudança de papel, ambiente, ou ambos” (p.22)10. Toda transição ecológica propicia processos de desenvolvimento e é mais efetiva e saudável na medida em que a criança se sente apoiada por pessoas que são significativas para ela.
O ingresso no ensino fundamental é um exemplo típico de transição ecológica. A 1ª série traz demandas novas para as crianças, tais como aprender a lidar com um novo ambiente, relacionar-se com adultos ainda desconhecidos, conquistar aceitação em um novo grupo de iguais e enfrentar demandas acadêmicas mais desafiadoras. Inúmeras mudanças então ocorrem simultaneamente, requerendo adaptações elaboradas. O contexto social se amplia, as expectativas dos adultos se tornam mais exigentes, a dependência é menos tolerada, o suporte está menos disponível que em fases anteriores. No plano das relações interpessoais, é preciso negociar interações não apenas com crianças da mesma idade, mas também com crianças mais velhas, que frequentam as classes mais avançadas. E no plano acadêmico, a criança se depara com uma extensa agenda de novas habilidades a serem desenvolvidas e conhecimentos a serem dominados. É um enorme desafio à capacidade adaptativa da criança8.
Como toda transição ecológica, a 1ª série é um momento instigador de processos de desenvolvimento, no qual a criança constrói novas competências em resposta às mudanças e às novas demandas. Por outro lado, é também um período de imprevisibilidade e incertezas. As crianças devem se adaptar a um sistema ecológico que espera delas o cumprimento de diversas metas de aprendizagem e socialização, a serem alcançadas com menos supervisão e maior autonomia que na educação infantil. A combinação das novas demandas com a expectativa de autonomia, em um ambiente físico e social estranho (pois, em geral, a criança muda de escola ao passar para a 1ª série), configura um contexto onde cotidianamente as crianças serão mobilizadas por emoções como excitação, ansiedade e medo12.
Nos próximos parágrafos, examinamos o impacto dessas vivências no desenvolvimento da criança.
Tensões cotidianas na 1ª série: o que dizem as crianças

Para muitas crianças, as principais fontes de stress se encontram em situações recorrentes do dia a dia, como brigas entre os pais, práticas educativas inconsistentes, gozações de colegas, cobranças na escola13. São as tensões cotidianas, definidas como exigências ou demandas irritantes, frustrantes, perturbadoras, que em certo grau caracterizam as transações diárias com o ambiente (p.3)14. Trata-se de experiências da vida diária que o indivíduo avalia como prejudiciais ou ameaçadoras para seu bem-estar.
Em diferentes sistemas de ensino, as transições escolares são momentos em que as crianças estão mais vulneráveis ao stress15,16, porque essas transições envolvem, em si mesmas, diversos componentes de experiências com alto potencial estressante, como mudanças (por exemplo, de escola), perdas (por exemplo, por afastamento dos amigos da escola anterior), pressão (por exemplo, por desempenho) e imprevisibilidade (por exemplo, pela quebra na rotina)13.
Como uma transição no bojo de outras transições, a 1ª série parece ser particularmente estressante: alunos desse nível relatam mais sintomas de stress que os colegas das séries mais elevadas16.
Neste capítulo, a transição da 1ª série é focalizada segundo uma perspectiva de tensões cotidianas. Considerando, com Bronfenbrenner10, que o que importa para o comportamento e o desenvolvimento é o ambiente conforme ele é percebido e não conforme ele poderia existir na realidade “objetiva” (p.6), admitimos que para compreender a transição é preciso investigar como a criança percebe esse novo microssistema e suas relações com outros em que ela vive e convive, como a família e o grupo de companheiros. Desse modo, a perspectiva adotada considera a visão da criança sobre tensões cotidianas em diferentes domínios de sua vida escolar.
Com base na concepção de Elias15 sobre transições escolares, propomos que as demandas da 1ª série requerem um trabalho de adaptação com pelo menos quatro desafios: (a) ajustar-se às mudanças nas definições de papéis e comportamentos esperados; (b) situar-se na rede social ampliada; (c) adequar-se às normas e regras, explícitas e implícitas, do novo contexto; (d) lidar com o stress associado à imprevisibilidade e às incertezas inerentes à situação como um todo. O processo de adaptação é visto em uma perspectiva dinâmica e transacional: a criança traz para a escola um repertório prévio para lidar com os desafios da transição e esse repertório se reconstrói dia a dia no novo contexto, mediante as interações entre a criança em desenvolvimento e as propriedades mutantes do ambiente.

De acordo com essa perspectiva, supõe-se que a criança experimentará maior stress em domínios da vida escolar, cujas demandas específicas excedem seu repertório de enfrentamento ou, em outras palavras, excedem sua bagagem de recursos e disposições seletivas para agir no ambiente. Desse modo, é importante levar em conta, por um lado, a natureza dos desafios em perspectiva e, por outro, as disposições e recursos relevantes para os processos proximais implicados nos esforços adaptativos da criança.
Para ouvir as crianças sobre suas experiências com estressores relacionados à sua vida na escola, construímos o Inventário de Estressores Escolares – IEE, que investiga a percepção da criança sobre situações de tensão associadas ao cotidiano escolar. Para desenvolver esse instrumento, foi criado um conjunto de itens representativos de tensões cotidianas em quatro domínios da vida escolar: domínios de desempenho escolar e relação família-escola, mais diretamente vinculados ao desafio de ajustar-se às mudanças nas definições de papéis; domínio do relacionamento com os companheiros, associado ao desafio de situar-se na rede social ampliada; e domínio de demandas não acadêmicas, correspondente ao desafio de adequar-se às normas e regras, explícitas e implícitas do novo contexto.

O IEE compreende 30 itens que são apresentados em situação de entrevista individual. Exemplos de itens em cada domínio são: Não consegui terminar as lições na sala de aula (desempenho escolar); A professora mandou bilhete quando eu não estava aprendendo (relação família-escola); As crianças mais velhas me gozaram (relacionamento com os companheiros); Um adulto da escola chamou minha atenção com gritos (demandas não acadêmicas). Na aplicação, cada item é lido pelo examinador e a criança informa se o item aconteceu com ela durante o ano; após a leitura de todos os itens, aqueles que ela informou terem acontecido são apresentados novamente, para que indique o quanto cada situação a aborreceu (nada, mais ou menos, bastante, muito). Para cada domínio e para a escala geral, o IEE fornece uma pontuação de ocorrência, sinalizando a exposição aos estressores, e outra de impacto, refletindo suscetibilidade a esses estressores.
Em um estudo com 171 alunos da 1ª série em escolas públicas, procurou-se avaliar a intensidade do stress percebido pelas crianças em situações do cotidiano escolar, durante a transição, bem como investigar associações entre o stress em diferentes domínios e indicadores de desempenho e ajustamento17. Nos resultados, pelo menos 20% das crianças indicaram ter passado pela maioria das situações apresentadas na entrevista, além disso, identificaram grande parte das situações frequentes como fontes de stress moderado a alto.
Esse é o caso, por exemplo, de situações no domínio do relacionamento com os colegas (as crianças mais velhas me gozaram; alguns colegas me provocaram, xingaram ou colocaram apelido; meus colegas de classe bateram em mim; um colega brigou comigo), assim como situações como ficar chateado por estar longe da mãe, os pais ficarem zangados quando a criança não se sai bem na escola, os pais brigarem com ela na hora da lição e a professora mandar bilhete. Todas apareceram como frequentes e perturbadoras. Outras situações, não tão frequentes, também foram avaliadas como altamente perturbadoras, como ser mandado para a diretoria, ser roubado e ser repreendido abusivamente.
Algumas situações bastante comuns não foram vistas como fontes de stress. Por exemplo, as crianças não avaliaram como estressantes as situações em que o professor manda fazer lição na lousa ou chama na sua mesa para ensinar. Esses resultados parecem bastante positivos, já que se trata de situações que podem contribuir para uma transição bem sucedida na 1ª série, quando ocorrem no contexto de uma relação apoiadora entre o professor e o aluno.

As situações estressoras com as maiores médias de impacto estão concentradas nos domínios do relacionamento com os colegas, adaptação às demandas do contexto escolar e relação família-escola, resultados que convergem com os de outros autores18. Já o domínio do desempenho apresenta situações com médias de stress mais baixas.
Em relação ao seu papel de estudante, que deve responder a expectativas de bom desempenho, observa-se que nesse momento inicial as crianças não se sentem particularmente mobilizadas frente à dificuldade de aprendizagem em si. No entanto, seu desempenho está associado a situações perturbadoras envolvendo a família e o professor, o que provavelmente vai contribuir, ao longo do tempo, para que elas identifiquem o domínio do desempenho como uma importante fonte de stress, como tem sido observado em alunos de séries mais avançadas19.
Outro objetivo da pesquisa foi investigar associações entre percepção de stress em diferentes domínios da vida escolar e indicadores de desempenho e ajustamento na primeira série. O desempenho foi avaliado de duas formas: por meio de um teste objetivo de escrita, leitura e aritmética – o TDE – e por meio do julgamento da professora.
Os resultados referentes ao desempenho mostraram que a nota obtida pela criança no teste objetivo correlaciona com sua suscetibilidade ao stress no domínio do desempenho acadêmico: quanto pior o resultado na prova objetiva de desempenho escolar, maior o stress percebido pela criança em situações cotidianas relacionadas aos conteúdos escolares, tais como precisar de ajuda na hora da lição ou não conseguir terminar as tarefas. Por outro lado, a avaliação do desempenho feita pelo professor foi associada ao stress no domínio da relação família-escola: quanto mais desfavorável a avaliação do professor, maior o stress relatado pela criança no domínio da relação família-escola, tais como a professora mandar bilhetes para os pais por não estar aprendendo e os pais brigarem com ela na hora da lição. Ou seja, a percepção da criança converge com a avaliação do teste objetivo de desempenho, mas não com o julgamento do professor.
Como explicar essa divergência? Os resultados sugerem uma cadeia de eventos que começa pelos bilhetes da professora, comunicando a dificuldade de aprendizagem aos pais, e tem desdobramentos em casa, com repreensões pelo fraco desempenho e conflitos na hora da lição de casa. Esses atritos acabam por repercutir emocionalmente na criança, com mais força que as situações sinalizadoras da dificuldade de aprendizagem em si. O professor pressiona os pais, que por sua vez pressionam a criança, estabelecendo-se um circuito precoce de interações coercitivas.
O domínio das situações estressantes na convivência com os colegas apresentou associação negativa com indicadores de desempenho escolar. Embora não se encontrem na literatura estudos sobre a relação entre desempenho escolar e percepção de stress com os pares, a associação entre desempenho fraco e dificuldades nas relações com os companheiros está bem estabelecida e aparece precocemente, já no jardim de infância1.
Crianças que entram na escola com menos recursos de letramento e habilidades de trabalho menos desenvolvidas estão em maior risco para dificuldades relacionais com os pares3,20. Essas dificuldades, por sua vez, podem interferir no desempenho posterior1.
As correlações encontradas na pesquisa entre três variáveis – desempenho no TDE, stress no domínio do desempenho e stress no domínio das relações com os pares – poderiam sugerir que a criança envolvida nesse ciclo de desvantagem tem percepção acurada dos acontecimentos que protagoniza. Tal percepção pode ser um componente relevante para a melhor compreensão e manejo dos processos adaptativos em curso.
As crianças que se perceberam mais atingidas por situações de conflitos com os colegas também relataram maior stress no domínio das demandas não acadêmicas. Para tentar entender esse resultado, pode-se especular sobre as estratégias mobilizadas pelas crianças ante os conflitos.
Crianças de 8 a 10 anos utilizam frequentemente, em situações de conflito com os pares, dois tipos de estratégias de enfrentamento ou coping: ação agressiva ou busca de apoio social21. No entanto, para os alunos da 1ª série pode ser difícil, no pátio da escola, encontrar algum adulto disponível para ajudá-los a enfrentar uma provocação, gozação ou agressão. Sem apoio do adulto, resta a muitas crianças, por falta de repertório, a estratégia de ação agressiva ou a busca por apoio de outros colegas, que acabam por usar também a agressão. Porém, atitudes agressivas expõem a criança a repreensões e sanções disciplinares por parte dos adultos da escola, o que pode explicar, pelo menos em parte, a correlação elevada entre os dois domínios – o dos relacionamentos e o da adaptação às rotinas. Estratégias de coping baseadas na agressão também podem contribuir para a escalada dos conflitos e colocam a criança em risco de sofrer vitimização22.
Em resumo, na perspectiva das crianças entrevistadas, a escola se mostra um lugar pouco seguro, onde elas frequentemente se machucam, perdem objetos, brigam, presenciam agressões verbais por parte dos adultos e são, elas mesmas, alvo de agressões. Tais vivências não parecem ser inócuas para a saúde emocional das crianças. Um estudo recente mostrou elevada correlação entre o relato das crianças sobre tensões cotidianas na 1ª série e um indicador de sintomas de stress23.
O que a família pode fazer pela criança

No limiar da 1ª série, o papel da família se define em dois planos: aquilo que foi construído ao longo dos anos e o apoio no momento da transição.
O que foi construído ao longo dos anos são os recursos que a criança precisará mobilizar para encarar os desafios do novo ciclo de experiências escolares, assim como as disposições motivacionais para colocar em ação tais recursos. Trata-se na realidade de uma co-construção, que se dá desde o nascimento, por meio das interações face a face, das atividades lúdicas conjuntas, das oportunidades de manuseio de objetos e símbolos, da mediação das experiências da criança com o mundo físico e social à sua volta, enfim, por meio dos processos proximais ao longo da primeira infância.
Quando há um interesse ativo dos pais pelo desenvolvimento da criança, esse interesse se concretiza no investimento de tempo e de recursos na sua criação e educação. Interações são direcionadas e arranjos são feitos em casa, visando promover seu desenvolvimento. Exemplos simples da vida cotidiana ilustram o envolvimento dos pais: ler para a criança e ouvir sua leitura quando ela solicita; promover e compartilhar atividades no final de semana; assistir à TV junto com a criança e estimular a conversação sobre o que é visto.

A exposição da criança a essas interações e arranjos, ao longo do tempo, caracteriza processos proximais de desenvolvimento. Recursos que promovem processos proximais favorecedores do aprendizado escolar e da adaptação à escola compreendem as seguintes áreas de atividades e materiais: participação em experiências estimuladoras do desenvolvimento, como passeios e viagens; oportunidades de interação com os pais; disponibilidade de brinquedos e materiais que apresentam desafio ao pensar; disponibilidade de livros, jornais e revistas; uso adequado do tempo livre; acesso a atividades programadas de aprendizagem.
Examinemos alguns desses recursos brevemente.
Oportunidades de interação com os pais

A oportunidade de interação com os pais, em casa, aparece como um conjunto amplo de recursos associados a bons resultados acadêmicos e comportamentais da criança. De acordo com a literatura, interações com os pais constituem processos proximais dos mais significativos para o desenvolvimento afetivo e interpessoal, linguístico e cognitivo24.
Na construção de competências para enfrentar os desafios do ensino fundamental, a criança pequena e o pré-escolar podem se beneficiar muito no contato cotidiano com adultos significativos. Atividades como contar histórias e casos para a criança, fazer comentários sobre o mundo que a cerca, ter disposição para responder e formular perguntas, utilizar palavras que a criança conhece ou está prestes a conhecer proporcionam, todas elas, experiências relevantes para o desenvolvimento.
Essas experiências compartilhadas serão tanto mais benéficas quanto mais atenderem a quatro requisitos: (1) a reciprocidade, ou seja, a disposição do adulto para responder às iniciativas de contato da criança e não apenas conversar quando ele próprio, o adulto, decide fazê-lo; (2) a variedade e o significado do conteúdo desses diálogos; (3) o papel ativo desempenhado pela criança; (4) o papel do adulto como mediador, que estrutura e direciona as atividades para provocar experiências enriquecedoras25.
Compartilhamento de atividades de lazer e recreação

A participação em atividades de lazer diversificadas, compartilhadas com os pais ou outros adultos significativos, tem grande influência no desempenho escolar, por reunir alguns elementos favorecedores do desenvolvimento cognitivo e socioemocional. O primeiro elemento é o clima emocional: famílias que se reúnem para recreação são provavelmente aquelas cujos membros sentem prazer em estarem juntos. O segundo é a oportunidade de interação com os pais: em momentos de lazer os pais costumam estar mais disponíveis para interação. Finalmente, há um ingrediente específico associado a atividades como viagens, visitas a museus, idas ao circo e mesmo experiências mais triviais como uma caminhada pelo centro da cidade ou um percurso de ônibus pelos bairros. Esse ingrediente é a oportunidade que a criança tem de ampliar seu conhecimento do mundo com a mediação do adulto. O conhecimento do mundo é um fator de enriquecimento cultural, capacita a criança para a apreensão dos conteúdos escolares e contribui até mesmo para o aprendizado da leitura26.
Apoio da família no momento da transição
Ao passo que o investimento da família na criança ao longo dos anos pré-escolares constitui os alicerces de uma adaptação bem sucedida na escola, o apoio durante a transição da 1ª série é fundamental para garantir a plena realização desse potencial adaptativo acumulado ao longo do tempo.
Os mesmos recursos promotores de processos proximais que capacitam a criança nos anos pré-escolares continuam a operar positivamente: o acesso a passeios, a disponibilidade de livros e brinquedos, a oportunidade de interação com os pais em casa. Entretanto, no momento do ingresso no ensino fundamental, algo mais é necessário. É preciso que a criança se sinta apoiada nessa aventura, pelos adultos significativos do seu microssistema familiar.

Esse apoio será assegurado por meio do envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos. São exemplos de práticas parentais que promovem a ligação família-escola: o intercâmbio regular com o professor, a participação em reuniões e eventos promovidos pela escola, o acompanhamento das notas. No dia a dia, o apoio se concretiza em pequenas ações como suprir o material necessário, monitorar os horários, perguntar sobre a escola24.
As diferentes formas de envolvimento parental têm sido associadas a um melhor desempenho escolar durante a meninice, podendo contribuir para atenuar os efeitos da desvantagem econômica sobre o desempenho27. Os resultados em relação à assistência dos pais na lição de casa não são tão claros. As pesquisas sobre esse assunto têm apresentado resultados controvertidos, sugerindo que os efeitos podem ser benéficos, inócuos ou mesmo prejudiciais, dependendo de inúmeros fatores que determinam a qualidade da assistência proporcionada à criança28.
Estabilidade do ambiente familiar

A estabilidade do ambiente familiar é relevante em todo o percurso de vida da criança, porque é garantia de manutenção dos processos proximais. Em períodos de transição, como é o caso do ingresso no ensino fundamental, torna-se um fator crítico, por assegurar à criança uma base segura para enfrentar as múltiplas mudanças que estão acontecendo no seu dia a dia. A estabilidade pode ser apreciada em pelo menos três aspectos da vida familiar: o clima emocional, as rotinas e rituais, as práticas educativas.
Um clima emocional positivo na família se caracteriza por processos interpessoais com elevada coesão, resolução construtiva dos conflitos, ausência de hostilidade e uma relação afetiva apoiadora com a criança. Essas características favorecem o desenvolvimento, pela criança, de um senso de permanência e estabilidade de sua base afetiva29.
Rotinas e rituais da família são padrões de atividade que se repetem e, por isso, nutrem na criança sentimentos de previsibilidade, controle e segurança. Reuniões regulares da família (por exemplo, almoçarem todos juntos aos domingos), horários definidos para algumas atividades diárias (por exemplo, hora de jantar e de ir para a cama), pequenas incumbências da criança (por exemplo, arrumar sua cama), rituais associados a determinados momentos (por exemplo, um infalível beijo de boa noite na hora de dormir) fazem parte de um elenco de atividades previsíveis que sinalizam algum grau de estabilidade na vida familiar24.
No que se refere a práticas educativas, são importantes as práticas proativas. Tais práticas conjugam procedimentos em que os pais: (a) estabelecem regras e limites; (b) oferecem explicação clara do comportamento esperado e das consequências para a violação da regra; (c) monitoram as atividades da criança30,31. Em um estudo prospectivo com crianças que estavam iniciando a 1ª série, obtivemos resultados sugestivos de que as práticas parentais proativas favorecem o ajustamento da criança ao ambiente escolar, segundo a avaliação do professor23.
Como isso acontece? Supomos que, quando os pais estabelecem regras regularmente, a criança compreende melhor o sistema de regras vigente na escola. Ambientes familiares onde há expectativas e regras aplicadas consistentemente e com clareza facilitam a discriminação, por parte da criança, dos processos de controle vigentes dentro da escola. Em outras palavras, a criança aprende que há relações previsíveis entre suas ações e as consequências delas, e tem mais facilidade para compreender os processos através dos quais os resultados na escola podem ser colocados sob seu próprio controle.

Em resumo, os pais e a família podem facilitar a transição da 1ª série proporcionando, desde os primeiros anos de vida, experiências enriquecedoras que promovem o aprendizado escolar, a motivação da criança para os estudos e o desenvolvimento de competências interpessoais que garantem um bom relacionamento com professores e colegas. No momento da transição, as práticas parentais que promovem a ligação família-escola têm um importante papel. Por meio do seu envolvimento com a vida escolar dos filhos, os pais comunicam à criança o quanto se importam com ela e o quanto valorizam seu aprendizado escolar. A estabilidade do ambiente familiar nessa fase dá à criança um senso de permanência e segurança frente às mudanças em perspectiva.
O que a escola pode fazer pela criança
De acordo com o referencial bioecológico, o desenvolvimento da criança é o produto dos processos proximais que ocorrem nos múltiplos ambientes em que ela vive em processo cumulativo11. No momento da transição da 1ª série, a exposição da criança a ambientes educacionais formais é mais recente que a exposição ao ambiente familiar. Portanto, pode-se supor que até então a escola tivera menor participação que a família na construção das competências da criança para lidar com a transição. À medida que a exposição ao ambiente escolar se acumula, espera-se maior influência desse contexto sobre os resultados escolares da criança.
Não obstante, a escola tem um importante papel na transição, podendo influir no desenvolvimento dos recursos da criança, na relação família-escola e diretamente nas tarefas adaptativas da transição da 1ª série.
Educação infantil
A passagem pela educação infantil contribui decisivamente para uma transição bem sucedida, seja por propiciar o desenvolvimento das competências necessárias ao enfrentamento dos desafios da transição2, seja por atenuar o impacto das tensões cotidianas23, provavelmente por meio de mecanismos de dessensiblização e familiarização que tornam o contexto escolar mais previsível e controlável para essas crianças.
Crianças que não tiveram a oportunidade de vivenciar uma experiência escolar prévia estão mais vulneráveis ao stress cotidiano na 1ª série. Nossas pesquisas (Marturano, Trivellato-Ferreira & Gardinal, no prelo) evidenciaram maior sobrecarga de demandas da transição para as crianças sem passagem pela educação infantil17. No domínio do desempenho escolar, convergindo com a avaliação do professor e com um teste objetivo de desempenho, as crianças que não fizeram educação infantil se sentiam mais pressionadas pelas cobranças da família e pela própria percepção de que não estavam evoluindo bem nos estudos. No domínio das demandas não acadêmicas, elas pareciam sofrer mais os efeitos da permanência prolongada em um ambiente estranho, onde tinham que tomar conta de si e de seus pertences. A convivência com os iguais era mais estressante, marcada por maior exposição a agressões físicas e brigas17.
Resultados preliminares de um estudo em andamento sugerem que a desvantagem das crianças que não passaram pela educação infantil tende a persistir na 2ª série, em termos de defasagem no aprendizado escolar e de vivência de stress na escola. Esse é mais um indício de que a criança precisa de ajuda na transição da 1ª série, entrelaçada, como vimos, com outras transições importantes.
Trabalhando com a transição na escola

Em primeiro lugar, é importante focalizar a transição em si. Estratégias para suavizar a transição podem ser implementadas, tais como visitas dos alunos da educação infantil à sua futura escola, informações aos pais sobre o funcionamento da 1ª série, um programa de acolhimento nas primeiras semanas de aula e a comunicação frequente e amigável com a família ao longo do ano. Em segundo lugar, é preciso lidar com as dificuldades encontradas na convivência entre as crianças. Sendo o domínio dos relacionamentos com os colegas a principal fonte de stress na 1ª série, esforços devem ser feitos nas escolas para ajudar a melhorar a convivência entre os alunos.
A convivência entre as crianças pode ser melhorada por meio de procedimentos com foco no dia a dia da 1ª série. Por exemplo, conflitos entre as crianças podem ser reduzidos e relações de amizade podem ser fomentadas e fortalecidas se o horário do recreio for aproveitado com a oferta de atividades lúdicas acompanhadas por um adulto32. É possível ensinar as crianças a lidarem com o stress dos relacionamentos por meio de técnicas de relaxamento, habilidades de solução de problemas interpessoais e aprendizado da autorregulação emocional19,33,34.
Como o professor pode ajudar
Borges35 trabalhou com as relações interpessoais no contexto escolar durante a transição da 1ª série. Seu estudo teve como objetivo verificar a adequação de um programa de intervenção destinado a melhorar a convivência entre alunos iniciantes no ensino fundamental.
Partindo do pressuposto de que conflitos são inerentes à convivência, foi elaborado um programa tendo por metas reduzir o número de conflitos que os alunos não conseguem resolver entre eles, aumentar o número de soluções pró-sociais para os conflitos e ampliar a rede de apoio na sala de aula. A intervenção em sala de aula tem três componentes: o programa Eu Posso Resolver Problemas34, que desenvolve habilidades de solução de problemas interpessoais; um módulo de controle da raiva; um módulo de iniciação aos valores humanos, que visa ampliar o repertório de respostas pró-sociais e a motivação pró-social dos alunos.
Aplicada pela professora em uma classe de primeira série em escola municipal, a intervenção mostrou efeitos positivos. As crianças que passaram pela intervenção ampliaram suas habilidades de solução de problemas interpessoais, diminuíram a participação em conflitos interpessoais abertos ao longo do ano letivo, reduziram comportamentos incompatíveis com as atividades escolares e melhoraram o desempenho pró-social. Em relação aos colegas que não passaram pelo programa, as crianças que receberam a intervenção mostraram, após a intervenção, maior preparo para o enfrentamento do stress. Elas também passaram a perceber os companheiros como mais solidários depois da intervenção, ou seja, ampliou-se a rede de apoio entre colegas.
Ficou claro que os conflitos interpessoais, uma condição desorganizadora de processos proximais na sala de aula, podem ser reduzidos dramaticamente com uma intervenção em que o próprio professor trabalha tanto no plano dos recursos como no plano das disposições seletivas para a ação. No plano dos recursos, as crianças receberam suporte para construir competências cognitivas e realizar ensaios comportamentais para a resolução dos conflitos emergentes no dia a dia da sala de aula. No plano das disposições, elas tiveram a oportunidade de desenvolver motivação pró-social, uma característica geradora de processos proximais, ao mesmo tempo em que aprendiam a controlar emoções negativas, que podem operar como disposições desorganizadoras, obstruindo interações e atividades promotoras de desenvolvimento.
O trabalho descrito demonstra o papel relevante do professor no sentido de facilitar a transição da 1ª série. No entanto, deve ficar claro que, se o professor pode implementar, por sua iniciativa, estratégias voltadas para a facilitação da transição, a manutenção delas ao longo do tempo depende do compromisso institucional da escola e de políticas públicas direcionadas para melhorar a qualidade de vida das crianças no espaço escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos demonstrar neste capítulo que o ingresso no ensino fundamental é uma importante transição ecológica, que acontece no bojo de transições desenvolvimentais nos planos cognitivo e psicossocial. A conjunção configurada nessa tríplice transição faz do ingresso no ensino fundamental um momento particularmente sensível à influência da escola, de tal modo que experiências cotidianas vividas no contexto escolar durante a transição podem influenciar a trajetória futura do aluno, nos anos subsequentes do ensino fundamental.
Focalizando a escola como fonte de tensões cotidianas, procuramos ouvir os alunos da 1ª série sobre suas vivências nesse novo contexto e também investigamos uma possível relação entre vivências de stress e indicadores de aprendizado e adaptação à escola. Verificamos que, para muitas crianças, o dia a dia da 1ª série é atravessado por aborrecimentos em múltiplos domínios, tensões cumulativas que impactam sua vida não somente na escola como também em casa. Como assinalamos atrás, tais vivências não são inócuas para a saúde emocional das crianças, visto que encontramos também elevada correlação entre exposição a tensões cotidianas na 1ª série e sintomas de stress.
Refletindo sobre os meios de ajudar as crianças a superarem com sucesso os desafios da transição, encontramos na família e na própria escola poderosas fontes de apoio.
Os pais e a família são a principal fonte de apoio com que a criança conta para a transição. No entanto, ressalta-se o papel fundamental da educação infantil. Cabe aos gestores públicos garantir a universalidade do acesso a esse nível de ensino, que contribui efetivamente para minimizar o stress, elevar o desempenho e promover o ajustamento da criança ao novo contexto. À escola de ensino fundamental cabe programar medidas de acolhimento que favoreçam uma transição tranquila. A escola tem também a atribuição de estabelecer e manter um relacionamento cordial com a família, assim como informar os pais sobre meios de apoiar a criança no cumprimento das tarefas adaptativas da transição.
Profa. Dra. Edna Maria Marturano– Tem graduação em Psicologia – Ribeirão Preto pela Universidade de São Paulo (1968), mestrado em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo (1971) e doutorado em Ciências (Psicologia ) pela Universidade de São Paulo (1973). Atualmente é professora titular da Universidade de São Paulo, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. É orientadora credenciada no programa de pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto / USP. Tem experiência nas áreas de Psicologia do Desenvolvimento e Tratamento e Prevenção Psicológica, atuando principalmente nos seguintes temas: fatores de risco e proteção ao desenvolvimento da criança; promoção do desenvolvimento na escola; prevenção de problemas de comportamento em diferentes contextos; apoio psicopedagógico nas dificuldades de aprendizagem; família e desempenho escolar.
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com base no Que Li minha e todos os alunos tem direito de aprender de acordo com as suas necessidades o tempo do aluno nao e o tempo do professor nem de familia
Obrigada por compartilhar seus conhecimentos.Espero que conseguimos trabalhar com a base de acordo com a proposta da mesma.
Obrigada, por compartilhar conosco o seu artigo, pois, é de suma importância que nos preparemos como profissional da educação para acolher nossos alunos que passam por esse processo de transição.
Prezada, boa noite.
Estava em dúvida sobre meu TG, pois o tema que escolhi é exatamente o processo de transição da criança para o 1° ano do ensino fundamental.
Seu artigo esclareceu minhas dúvidas e me norteou de como redigi-lo.
Fico feliz em poder ter acesso a tão construtiva informação.
Grata.