Neurofisiologia da dor-por Diego Fleury de Lemos Pereira

1.INTRODUÇÃO

 

O termo dor, tem sua origem no latim dolor, que significa sofrimento. Em populações primitivas, a dor derivada de lesões físicas era compreendida, no entanto, aquela relacionada as doenças, eram atribuídas a forças sobrenaturais e a penalização por pecados humanos (Lent, 2008). Hoje, sabemos que a dor é uma condição complexa e que não se resume a sensação desagradável. Na realidade, se trata de uma modalidade sensorial essencial à sobrevivência, principalmente quando nos referimos a dor aguda, mas que podem resultar em incapacidades e inabilidades nos indivíduos afetados, particularmente na dor crônica, já que envolvem aspectos emocionais e sociais (Fuchs e Vannmacher, 2017).

A International Association for the Study of Pain (IASP), define dor como experiência sensorial e emocional desagradável, relacionada a dano tecidual real ou potencial, apresentando dois componentes: percepção dolorosa e a reatividade emocional a dor (IASP, 1986). Segundo a IASP, apesar de a maioria dos cenários cotidianos em que a dor está presente serem passíveis de tratamento para eliminá-la, eles acometem uma parcela muito grande da sociedade, em quadros como cirurgias, traumatismos e acidentes, queimaduras, parto, dor de cabeça, cólica menstrual e dores de dente (Siqueira, 2018).

 

Segundo estudo realizado pela Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED) em 2017, cerca de 37% dos brasileiros apresentam quadro de dor crônica, que é aquela que se estende por mais de 3 meses, principalmente relacionada a dor de cabeça (SBED, 2017). Outros estudos recentes trazem que aproximadamente 10% a 26% da população adulta norteamericana possui condições dolorosas na região bucomaxilofacial (Shaefer et al, 2018), e ainda que 20% da população mundial apresentam quadro de dor intratável, que resulta na incapacidade do paciente (Xie et al, 2018). Diante disso, é evidente a necessidade de se entender os mecanismos relacionados com o processo doloroso, pois se trata de uma condição habitual da maioria da população. Assim, o objetivo deste trabalho é pormenorizar as definições, as estruturas envolvidas e os mecanismos de produção e modulação da dor.

  1. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.1 Importância da dor

Naturalmente, a dor é uma condição necessária para nossa sobrevivência, pois nos protege de situações prejudiciais, nos faz procurar por ajuda especializada e sensibiliza partes danificadas do corpo enquanto a reparação tecidual está ocorrendo. No entanto é um agravante na maioria das enfermidades clínicas conhecidas, além de ser a razão mais comum para consultas médicas na maioria dos países desenvolvidos (Debono et al, 2013; Northern Neurobiology Group, 1983).

São conhecidas algumas situações na qual um indivíduo não sente dor, como nos casos em que a insensibilidade à dor é congênita (genética), tornando essas pessoas imunes a cortes, fraturas, queimaduras, por exemplo. Nesses casos, é raro casos em que o indivíduo consiga atingir a vida adulta, e quando isso acontece, a presença de sequelas é praticamente inevitável. Em um relato, a mãe de uma criança de 3 anos insensível a dor contou que, decidiu extrair todos os dentes de sua filha, pois, a criança estava mutilando os próprios dedos, e em outro momento mutilou a própria língua e quase morreu engasgada com o sangue (Moreschi, 2011).

Outro relato, Owen, 20 anos, conta que anda com dificuldades, pois, quando era adolescente, ele quebrou a perna jogando basquete – só que, como não parou de jogar, esmigalhou os ossos e teve de fazer uma operação para colocar 10 pinos na perna (Moreschi, 2011).

Estes eventos mostram que sentir dor é extremamente necessário, apesar do incomodo causado, porém este também é um fator incapacitante e causa muitos problemas quando persiste por longo tempo. Dessa forma, estudos para o complexo mecanismo e fisiologia da dor são muito importantes para a rotina clínica, uma vez que, elucidando os sinalizadores e vias envolvidas, cria-se espaço para desenvolvimento de novos fármacos que levem a melhora na farmacoterapia de enfermidades (Rang, 2016).

2.2 Mecanismos neuronais de dor

Tipicamente, a dor acontece em resposta direta a um evento indesejável, geralmente associado a lesão tecidual, como por exemplo: trauma, inflamação ou câncer. Porém, nem sempre é tão simples assim. Os fatores desencadeantes de dor, pode, por vezes serem incompreensível. A dor intensa pode originar-se independentemente de qualquer causa predisponente óbvia (neuralgia do trigêmeo) ou persistir por muito tempo depois que a lesão precipitante esteja resolvida, como na dor do membro fantasma (Rang, 2016).

Em um mecanismo típico, estímulos (mecânico, químico ou físico) são compreendidos por terminações nervosas de neurônios primários nociceptivos, através de receptores especifico (receptor TRPV1 para temperaturas alta, por exemplo). Tal estímulo promove abertura dos canais de Na+, que geral um potencial de ação. Se o estímulo é forte o suficiente para atingir o limiar de ação, os canais voltagem dependentes se abrem, promovendo o influxo de Na+ a partir do axônio. Nos terminais nervosos (próximo a fenda sináptica), os canais de Ca2+ se abrem, e transportam as vesículas contendo neurotransmissores (principalmente glutamato) para a membrana, liberando-os na fenda sináptica (Kandel, 2014).

Uma vez liberados, neurotransmissores excitatórios, se ligam a receptores específicos (glutamato á receptores NMDA) inotrópicos ou metabotrópicos (substância P á receptores NK1), que excitam os neurônios de projeção presentes na medula, cuja função é enviar a transmissão nervosa ao encéfalo. Receptores inotrópicos possuem ação imediata, no caso do NMDA, abre-se canais de Ca2+ e muda-se o potencial da membrana. Já receptores metabotrópicos como NK1, atuam como receptor de segundo mensageiro, na qual, não muda-se o potencial de ação, mas sim a conformação a estrutura bioquímica, como aumento da expressão de algum receptor específico (Kandel, 2014).

 

 

Sendo assim, um estímulo inicial, causa uma série de mudanças fisiológicas, que acarretam na transmissão nervosa a partir de um neurônio sensorial nociceptivo periférico, para a medula e enfim para o encéfalo.

2.3 Transmissão da informação nociceptiva da medula espinal ao tálamo

O processamento central da dor, vai ocorrer em cinco vias ascendentes principais: tratos espinotalâmico, espinorreticular, espinomesencefálico, cervicotalâmico e espino-hipotalâmico. A via do trato espinotalâmico recebe impulsos de neurônios nociceptores específicos (apenas fibras Aδ e C), termossensíveis, e de amplo espectro dinâmico das lâminas I, V, VI e VII do corno dorsal. Em seguida, cruza a linha central da coluna espinal e ascendem até os núcleos talâmicos, onde o impulso elétrico provoca a sensação de dor (Lent, 2008; Kandel, 2014).

O trato espinorreticular possui os axônios dos neurônios de projeção das lâminas VII e VIII do corno dorsal sem cruzar a linha média, ascende da medula espinhal e termina na formação reticular e no tálamo. O trato espinomesencefálico, por sua vez, projeta a partir das lâminas I e V, e possui projeção para a amígdala que contribui para o componente afetivo da dor. O trato cervicotalâmico recebe sinal das lâminas III e IV do corno dorsal e ascende no tronco encefálico até chegar ao tálamo. O trato espino-hipotalâmico, por sua vez, abriga os axônios dos neurônios presentes nas lâminas I, V e VIII do corno da medula, e regulam respostas neuroendócrinas e cardiovasculares nas síndromes dolorosas (Lent, 2008; Kandel, 2014). O tálamo desempenha um papel muito importante na integração do impulso doloroso.  A partir dele, neurônios de terceira ordem transmitem impulsos para o córtex cerebral, onde ocorre o processamento que resulta em consciência da dor (Vitor et al, 2008).

 

 

 

2.4 Núcleos talâmicos e componentes sensorial-discriminativo e afetivo-motivacional da dor

Ao funcionar como uma estação de transmissão, o tálamo direciona informações sensoriais ao córtex. Duas das regiões talâmicas mais importantes são os grupos nucleares lateral e medial. Sendo que os grupos nucleares laterais estão envolvidos principalmente no aspecto sensorial-discriminativo da dor, que inclui a localização precisa, modalidade e intensidade do estímulo nocivo. Os núcleos talâmicos mediais, por sua vez, estão envolvidos no componente afetivo-motivacional, como estado emocional, atencional e cognitivos envolvidos nos aspectos afetivos da dor (Lent, 2008; Kandel, 2014).

2.5 Áreas corticais e componentes sensorial-discriminativo e afetivo-motivacional da dor

 

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A percepção dos estímulos nociceptivos ocorre quando as informações sensoriais alcançam o córtex e ativam suas áreas. As projeções tálamo-corticais laterais alcançam principalmente as áreas corticais somatossensoriais primária SI e SII, sendo que os nociceptores da área SI codificam topograficamente as informações nociceptivas de intensidades diferentes e aqueles presentes na área SII na codificação temporal da informação dolorosa. O córtex insular contribui para a regulação da atividade autonômica durante processos dolorosos, de forma que a interação sensório-límbica é essencial para a resposta apropriada no contexto afetivo emocional da percepção da dor (Lent, 2008; Kandel, 2014).

 

 

 

 

  1. CONCLUSÃO

O mecanismo da dor, desde o recebimento do estímulo, até a sensação de dor, é de tal complexidade, que ainda não pode ser explicada com exata clareza. Conhecer os mecanismos é de extrema importância para uma farmacoterapia eficiente. Finalmente, olhando para o futuro, veremos que muitos alvos potenciais para novos fármacos emergiram à medida que avançaram nossos conhecimentos dos mecanismos neurais subjacentes à dor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Debono, David J.; Hoeksema, Laura J.; Hobbs, Raymond D. (2013). Caring for Patients With Chronic Pain: Pearls and Pitfalls. The Journal of the American Osteopathic Association. 113 (8): 620–627

Fuchs, F. D.; Vannmacher, L, (2017). Farmacologia Clínica e terapêutica. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

IASP, (1986). Classification of chronic pain. Descriptions of chronic pain syndromes and definitions of pain terms. Prepared by the International Association for the Study of Pain, Subcommittee on Taxonomy. Pain Suppl. 3:S1-226.

KANDEL, E.R.; SCHWARTZ, J.H.; JESSELL, T.M. Princípios da Neurociência.5ª ed.  São Paulo: Manole, 2014.

Lent, R, (2008). Neurociência da Mente e do Comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

Moreschi, B, (2011). As pessoas que não sentem dor. Super interessante. Disponível em < https://super.abril.com.br/saude/as-pessoas-que-nao-sentem-dor/> Acesso em 18. Set. 2018.

Northern Neurobiology Group, (1983). The neurobiology of pain: Symposium of the Northern Neurobiology Group. Manchester University

Rang, H.P., Dale, M.M., Ritter, J.M., Flower, R.J., Henderson, G. Farmacologia. 8ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016.

Shaefer, J. R. et al. Sex, Gender, and Orofacial Pain. Dental Clinics of North America. Volume 62, Issue 4, October 2018, Pages 665-682.

Siqueira, J. T. T. Porque a Dor é uma questão também de Saúde Pública!. Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor – SBED. Disponível em: <http://www.sbed.org.br/materias.php?cd_secao=74>. Acesso em 15. Set. 2018.

Xie, Y-F, et al, (2018). Optogenetic exploration and modulation of pain processing. Experimental Neurology Volume 306, Pages 117-121.

 

Dr. Diego Fleury de Lemos Pereira-Graduação em Medicina pela Universidade Federal da Grande Dourados (2005-2010). Residência em oftalmologia no Hospital Central da Aeronáutica (2012,2013 e 2014). Fellowship em retina e vitreo (2015, 2016) na Universidade Federal Fluminense.Especialização em oftalmologia pela PUC RJ (2013 e 2014). Titulo de Especialista em Oftalmologia pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia. Titulo em Especialista em Oftalmologia pelo Ministerio da Educação (MEC). Membro da Sociedade Brasileira de Retina e Vitreo. Membro da Sociedade de Visão Subnormal. Trabalha como oftalmologista assistente no Hospital Universitário da Grande Dourados, Mato Grosso do Sul desde 2015 (EBSERH). Inscrito como aluno especial no Programa de Pós Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal da Grande Dourados, MS.

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